segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Johannes

Hoje comemoram-se os 450 anos de nascimento do grande matemático Johannes Kepler. Nasceu em Weil der Stadt, na Alemanha, em 27 de dezembro de 1571. Estudou em Leonberg, Adelberg, Maulbronn e Tübinger. Depois ensinou matemática em Graz, na Áustria. A viagem a essa cidade, foi uma aventura, na verdade. Viajou de Tübinger até Ulm a cavalo. De Ulm (cidade onde posteriormente nasceria Albert Einstein) até a cidade de Linz ele foi de barco e, finalmente, de Linz até Graz viajou de carroça. Trabalhou ainda em Praga, em Linz, viveu em Ulm e morreu em Regensburg, em 1630. Foi autor de diversas obras, muitas delas impressas a custo de muito sacrifício financeiro, entre elas "Mysterium Cosmographicum", "Astronomiae Pars Optica", "Astronomiae Nova" e "Harmonices Mundi". Sua principal descoberta foram as hoje conhecidas 'leis de Kepler', que descrevem com muito detalhe como é o movimento dos planetas em torno do Sol, descoberta essa realizada várias décadas antes de Newton descobrir a lei da gravitação universal [1].





[1] Para uma discussão acerca das leis de Kepler, olhar nesse blog o que foi publicado em 15/12/2012 no endereço:  http://jangadaeletronica.blogspot.com/2012/12/kepler-e-os-primordios-da-teoria-da.html

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

A dualidade onda-partícula


Um dos aspectos conceituais básicos da chamada interpretação de Copenhague da mecânica quântica é a de que existe uma dualidade onda-partícula, segundo a qual os objetos ao nível nanoscópico como elétrons, prótons, átomos, fótons, etc, se comportariam como onda ou como partícula de acordo com as situações físicas estudadas. De acordo com muitos pesquisadores, entretanto, partícula é algo que não existe no nível de dimensões dos elétrons, por exemplo, assim como não existem órbitas quantizadas, nuvens de elétrons pontuais, etc. Como apontado por J.P. Ralston [1], Wolfgang Pauli em uma carta escrita a Einstein, afirma que a existência de um elétron pontual em uma posição restrita do espaço (sharp position) foi uma criação realizada fora das leis da natureza. Como mostrado na Ref. [1] tanto a escala de tempo quanto as dimensões envolvidas no efeito fotoelétrico, para ficar apenas num fenômeno, são completamente inconsistentes com um ‘fóton’ sendo localizado em qualquer local na escala do átomo. Assim, a pontualidade da transição verificada no efeito fotoelétrico com uma luz muito bem definida seria devida a uma resposta ressonante do átomo, como se fosse um nanodetector, e não a fótons (ou partículas com energia concentrada). Essa crítica à dualidade onda-partícula está muito bem expressa no parágrafo abaixo (em tradução livre do texto em inglês) reproduzido da Ref. [1]:

O padrão de substituição de cálculos por padrões verbais sem correspondência é bizarro. Alguém deve ter se beneficiado com isso. Aqui está uma analogia. Depois de milhares de anos, as pessoas finalmente descobriram equações para astronomia que realmente descrevem o movimento planetário. A descoberta de que os planetas são rochas deveria ter eliminado a teoria de que os planetas são demônios, mas não o fez. Eram muitos pessoas ganhando a vida com demônios, e o negócio de demônios nunca deixou de ser lucrativo. Hoje em dia a mecânica celeste é usada para fazer horóscopos de alta precisão para pessoas ricas supersticiosas, que pagam para acreditar que planetas são demônios. A interpretação Horoscópica da mecânica celeste usa suposições demoníacas para interpretar o que quer que um planeta de rocha possa estar fazendo em palavras demoníacas. O fato de nenhum demônio aparecer em qualquer lugar de qualquer equação, enquanto tão vividamente imaginado na interpretação, é considerado a prova de que os demônios são muito complicados. Cada planeta tem um aspecto de demônio e um aspecto de rocha, totalmente complementares, então quando você vê um aspecto, você não pode ver o outro. A maior sabedoria da interpretação Horoscópica é que os planetas são ambos e nem pedras e demônios ao mesmo tempo. Nenhum cérebro humano macroscópico pode compreendê-lo completamente*.

[1] J.P. Ralston, How to understand quantum mechanics, Morgan & Claypoll Publishers (2018).

* Original: The pattern of replacing calculations by verbal patterns that don’t match is bizarre. Someone must have benefited. Here is an analogy. After thousands of years people finally discovered equations for astronomy that actually describe planetary motion. The discovery that planets are rocks should have killed the theory that planets are demons, but it did not. There were too many people making a living off demons, and the demon business never stopped being profitable. Nowadays celestial mechanics is used to make high precision horoscopes for superstitious rich people, who pay money to believe planets are demons. The Horoscopic interpretation of celestial mechanics uses demon-assumptions to interpret whatever a rock planet might be doing in demon-words. The fact no demon appears anywhere in any equation, while so vividly imagined in the interpretation, is held to be proof that demons are very tricky. Every planet has a demon aspect, and a rock aspect, totally complementary, so when you see one aspect you cannot see the other. The greatest wisdom of the Horoscopic interpretation is that planets are both and neither rocks and demons at the same time. No macroscopic human brain can fully comprehend it. J.P. Ralston.

sábado, 14 de agosto de 2021

Centenário de um divulgador de Astronomia

Esse ano comemora-se o centenário de nascimento do Prof. Rubens de Azevedo, fundador da Sociedade Brasileira dos Amigos da Astronomia (SBAA), ainda nos idos de 1947. Rubens de Azevedo foi professor na Universidade Estadual do Ceará e autor de diversos livros de divulgação como "Lua, degrau para o infinito", "Selene, a lua ao alcance de todos", "Na era da Astronáutica", "No mundo da estelândia", entre outros. Fundou o Observatório Astronômico da Paraíba e foi colaborador do Observatório do Capricórnio (inicialmente em São Paulo e posteriormente transferido para Campinas) quando ainda era dirigido pelo seu fundador, Jean Nicolini. Rubens de Azevedo é autor do primeiro mapa da Lua desenhado no Brasil, numa época em que a fotografia astronômica era uma atividade bastante incipiente. Participou de um programa internacional de observação dos chamados TLP (Transient Lunar Phenomena) que trata-se de brilhos excepcionais e ocasionais verificados em algumas crateras lunares. Durante as missões Apolos, no final da década de 1960, o professor Rubens de Azevedo colaborou com a observação da superfície lunar, conseguindo observar um vale que aparentemente estava ligado à cratera Grimaldi. Posteriormente esse vale foi confirmado por observações realizadas pelos astronautas enquanto sobrevoavam o nosso satélite.

Conheci o Prof. Rubens de Azevedo nas seguintes circunstâncias. Em 1977 havia uma coluna semanal de Astronomia no Jornal O Povo, de Fortaleza, denominada Cosmos e assinada pelo astrônomo amador Cláudio Pamplona. Meu pai levava periodicamente para casa a página dessa coluna. Em uma ocasião, Cláudio Pamplona informou que iniciaria um curso de astronomia popular, ou seja, para qualquer interessado sobre o assunto, na Casa de Juvenal Galeno, no centro de Fortaleza. A Casa de Juvenal Galeno era um espaço cultural onde havia reunião de poetas, músicos, pintores, e nas quartas feiras à noite se reuniam os sócios da SBAA. Meu pai se prontificou a ir comigo participar desse curso, e o frequentamos durante todo o ano (e em anos seguintes). A maior parte das aulas era ministrada pelo Prof. Rubens de Azevedo e algumas vezes havia também observações com pequenas lunetas, que se não me falha a memória, eram levadas pelo Prof. Rubens e pelo Cláudio Pamplona. As aulas eram bastante básicas porque o público era também muito eclético: havia estudantes do ensino fundamental como eu; um técnico em contabilidade, que era o meu pai; jornalistas; advogados; um juíz de direito, Marijeso Benevides; um torneiro mecânico; um general do exército; estudantes do ensino médio; engenheiros; professores de diversas disciplinas, entre outros. Muito didático, o professor Rubens de Azevedo falava de temas como o movimento dos planetas, as estações do ano, história da astronomia, coordenadas celestes, a Lua - que era a sua especialidade, o brilho das estrelas. Mensalmente ele distribuía com os sócios o periódico Zodíaco (um informativo mimeografado mensalmente por ele próprio) que na época era o órgão de divulgação tanto da SBAA quanto da UBA, União Brasileira de Astronomia, que por aqueles dias estava ancorada em Fortaleza também sob a presidência do Prof. Rubens.

O professor Rubens de Azevedo tinha verdadeira satisfação em divulgar a Astronomia. Lembro-me particularmente, que uns três anos após esse curso, visitava-o todas as tardes de sábado na sua casa, que ficava na rua Solón Pinheiro, 1580. O prof. Rubens possuía duas grandes bibliotecas, uma dedicada à Astronomia e uma outra dedicada a outros assuntos que também o apaixonavam, como a pintura, a música, a história, a cartografia, a arqueologia e a geografia. Ele deixava-me à vontade para pegar e ler os livros que quisesse durante aquelas tardes que transcorriam numa rapidez incrível. Às vezes eu tomava um café no final da tarde com ele e com sua sempre simpática esposa, D. Jandira Carvalho, embora a maioria das vezes eu recusasse o convite para não perturbar muito o velho mestre. Se eu tivesse dúvida sobre um determinado assunto, com muita paciência ele explicava, conectando a sua explicação a outras áreas do conhecimento. 

Em julho de 1978 ocorreu o II Encontro de Astronomia do Nordeste, em Recife, sob a coordenação do Pe. Jorge Polman, um entusiasta da Astronomia em Pernambuco. O Prof. Rubens de Azevedo iria participar do encontro indo de carona com o juiz de Direito Marijeso Benevides. Então iriam o juiz, sua esposa, o Prof. Rubens e a D. Jandira. Como sobrava um espaço no carro, consegui convencer o meu pai que seria interessante eu participar desse encontro e meu pai conseguiu convencer o Prof. Rubens de me levar com eles. Lembro-me que a viagem foi bastante agradável, o Prof. Rubens contando sua experiência de astrônomo amador e de participante de outros congressos de astronomia, falando sobre algumas histórias do seu pai, o poeta Otacílio de Azevedo, que havia falecido há poucos meses... O carro era um Fiat 147, acho que acabara de ser lançado. Na viagem paramos em Natal, onde visitamos um amigo do Prof. Rubens, Dr. Antonio Soares Filho, e depois rumamos para Recife. Na volta lembro-me que passamos em João Pessoa, que era uma cidade que o Prof. Rubens já havia morado e que ele gostava bastante (Foto 1).


Foto 1: Dr. Marijeso Benevides, esposa do Dr. Marijeso, eu e o Prof. Rubens de Azevedo em João Pessoa, 1978, no nosso retorno do II Encontro de Astronomia do Nordeste (foto D. Jandira Carvalho).

O II Encontro de Astronomia do Nordeste foi bastante marcante. O Prof. Rubens de Azevedo, se não me falha novamente a memória, falou da utilização do desenho nas observações astronômicas. Falaram também o Pe. Jorge Polman, o astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, além de outros astrônomos amadores de várias cidades do Nordeste (eu tinha um pequeno caderno onde fiz anotação sobre as várias palestras mas, infelizmente, o perdi). Após as apresentações as pessoas saíam e conversavam nos corredores, para mim era uma novidade interessante. Nesse encontro os organizadores também mimeografaram alguns textos e colocaram à venda para os participantes. Num desses intervalos fui olhar um dos materiais e lá encontrei o Sr. Francisco Coelho Filho, astrônomo amador cearense, e Ronaldo Rogério Mourão, astrônomo do Observatório Nacional no Rio de Janeiro (Foto 2). Há muitas outras histórias, noutra oportunidade retomo o tema.


Foto 2: No primeiro plano atrás da bancada: eu, Francisco Coelho Filho e Ronaldo Rogério de Freitas Mourão (II Encontro de Astronomia do Nordeste, Recife-PE, 1978).


Adendo em 30/10/2021Nesta sexta-feira (29), véspera do que seria seu centésimo aniversário, foi anunciado pela International Astronomical Union (Minor Planet Center) que o asteroide 84342 [2002 TP64], descoberto por Charles Juels e pelo brasileiro Paulo Holvorcem em 05/10/2002, acaba de ser nomeado oficialmente como (84342) Rubensdeazevedo. 

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Oumuamua

Oumuamua na língua dos havaianos significa "batedor", ou seja, aquele que vai à frente averiguando a estrada e abrindo caminho para os companheiros que vêm logo atrás. Esse foi o nome escolhido para se batizar um objeto, que à princípio parecia ser um cometa, mas posteriormente foi reclassificado como um asteróide, e finalmente como um objeto interestelar. Ele foi descoberto por Robert Weryk em 19 de outubro de 2017 utilizando o telescópio Panoramic Survey Telescope and Rapid Response System (Pan-STARRS) quando ele se encontrava a cerca de 30 milhões de quilômetros da Terra. Ele tem como característica apresentar uma órbita altamente hiperbólica, com excentricidade de 1,2, o que significa que com certeza é um objeto oriundo de fora do Sistema Solar. Por conta disso ele foi classificado como asteróide hiperbólico, sendo o primeiro dessa nova classe de objetos celestes (um segundo objeto com órbita hiperbólica [e=3,36] foi descoberto em 2019, 2I/Borisov, sendo claramente identificado como um cometa devido a expulsão de gases CN).

Outra característica interessante do Oumuamua é a sua velocidade relativamente elevada de ~ 26 km/s no espaço interestelar e que aumenta para mais de 80 km/s no ponto de maior aproximação do Sol. De acordo com as primeiras observações, o objeto teria o formato de um charuto com 400 metros de comprimento e aproximadamente 40 metros de largura. Os cálculos posteriormente indicaram que ele pode ser menor. De qualquer forma, observou-se que a razão entre o comprimento e a largura, a razão entre os eixos, pode estar compreendida entre 5:1 a 10:1. Essa razão é maior do que a de qualquer objeto conhecido do sistema solar, sendo uma possível justificativa para esse dado a erosão ao longo do tempo. A hipótese inicial mais provável, ou pelo menos a que a maioria dos astrônomos acreditava, é que se tratava de um pedaço de cometa. Mas um mistério adicional é qual seria a composição do gelo para fornecer a força suficiente para explicar a aceleração não gravitacional devido à sublimação, ao mesmo tempo em que nenhum gás ejetado era detectado. Entretanto, um artigo publicado por astrônomos da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, sugeriu uma diferente origem para o Oumuamua, na verdade sugeriu uma origem artificial para ele, e um estudo mais recente ainda sugere que seja o pedaço de um exoplaneta. 

1. Pedaço de um cometa/ iceberg de gelo: 

A hipótese de que Oumuamua seria um pedaço de cometa é devido ao fato de ter sido detectado aceleração não gravitacional associada ao objeto. Essa aceleração normalmente está associada com atividades cometárias. Ocorre que não foi observada nenhuma cauda característica de cometas, nenhuma linha de absorção ou emissão de gases [1, 2]. Uma hipótese similar é que Oumuamua fosse um iceberg de hidrogênio, uma vez que gelo H2 poderia ser formado em nuvens moleculares, embora essa nuvens deveriam ter alta densidade de gás. De fato, baseado em dados sobre a composição e a magnitude da aceleração não gravitacional, entre outros, os autores da Ref. [3] sugeriram que Oumuamua seria um cometa composto por gelo de hidrogênio molecular com o formato oblato e dimensões de 115 m x 111 m x 19 m. Contra essa hipótese está o fato de que cálculos mostram que um corpo constituído por hidrogênio experimentaria uma rápida erosão durante a sua viagem no meio interestelar. Sendo formado apenas por hidrogênio, e mesmo tendo ele uma dimensão de vários quilômetros de diâmetro, ele sofreria uma erosão completa num tempo inferior a 100 milhões de anos.

2. Sonda alienígena:

Percebendo que os estudos iniciais, tanto teóricos quanto observacionais, mostravam de uma forma clara que Oumuamua não se tratava de um cometa ativo, os autores da Ref. [4] sugeriram a possibilidade do excesso de aceleração ser o resultado da pressão de radiação solar. Nesse trabalho os autores fazem um cálculo e descobrem que se o objeto tiver uma relação massa/área da ordem de 0,1 g/cm2, seria possível a fabricação de uma sonda extremamente fina, entre 0,3 e 0,9 mm, que teria a vantagem de poder sobreviver a viagens interestelares a distâncias de até 5 kpc, resistindo a colisões com moléculas de gás, grãos de poeira e a tensões rotacionais e forças de maré. Em outras palavras, os autores sugerem que o objeto seja artificial, construído por uma civilização alienígena, enviada especificamente para investigar o sistema solar [5]. Para fortalecer ainda mais as suas suposições, discorrendo com mais detalhes a ideia do veleiro solar leve (light sail), um dos autores da Ref. [4] lançou em janeiro de 2021 o livro "Extraterrestrial: The First Sign of Intelligent Life beyond Earth" [5], que poderia ser traduzido para 'Extraterrestre: O Primeiro Sinal de Vida Inteligente além da Terra'. 

O livro de Loeb é para um amplo público. Ele começa poeticamente da seguinte forma: "Bem antes de sabermos de sua existência, o objeto estava viajando ao nosso encontro vindo da direção de Vega, uma estrela distante apenas vinte e cinco anos luz. Ele interceptou o plano orbital, no qual todos os planetas em nosso sistema solar se movimentam em torno do Sol, em 6 de setembro de 2017. Mas a trajetória extremamente hiperbólica do objeto garantiu que ele apenas visitaria, não ficaria. Em 9 de setembro de 2017, o visitante atingiu o seu perihélio, o ponto em que sua trajetória chega mais próximo do Sol. Depois disso ele começou a sair do sistema solar; sua velocidade - relativa à nossa estrela, era de cerca de 94.700 quilômetros por hora - mais do que o suficiente para escapar da gravidade solar. Ele passou pela distância orbital de Vênus ao Sol em 29 de setembro e pela distância orbital da Terra ao Sol em 7 de outubro, movendo-se rapidamente em direção à constelação de Pegasus e à escuridão além."

A possibilidade de uma sonda direcionada não pode ser descartada, é instigante, mas há outra possibilidade ainda.

3. Pedaço de um exoplaneta: 

Num artigo publicado esse ano, os autores argumentam que Oumuamua trata-se de parte de um planeta semelhante a Plutão, mas só que de um outro sistema planetário. Quando ele se aproximou do Sol, o corpo gelado do objeto se evaporou, fazendo com que ele se acelerasse, num efeito similar àquele do combustível de um foguete [6, 7]. 

Os autores da Ref. [6] realizaram cálculos da aceleração não gravitacional que seria experimentada por corpos compostos por uma gama de diferentes tipos de gelo e demonstraram que um corpo composto por gelo de nitrogênio, N2, satisfaria as restrições na aceleração não gravitacional, tamanho, albedo e falta de emissão detectável de CO, CO2 ou poeira. De acordo com os autores, Oumuamua tinha dimensões de 45 m x 44 m x 7,5 m quando observado a 1,42 unidades astronômicas do Sol,com um albedo de 0,64. Esse albedo é consistente com as superfícies ricas em N2 como Plutão e Tritão. Os autores ainda fazem uma estimativa de que Oumuamua foi expulso há cerca de 400 a 500 milhões de anos de um jovem sistema estelar, possivelmente do braço de Pegasus. Objetos como esse poderiam servir para se investigar diretamente as composições da superfície de um tipo novo de exoplaneta não observado: os exoplutões.

Os autores da Ref. [6] lembram ainda que mais de 98% da superfície de Plutão é coberta de gelo de N2 (nitrogênio), com CH4 e CO constituindo o restante do material da superfície. A quantidade de gelo na Planície Sputnik em Plutão é equivalente a uma camada global de 200 a 300 m de espessura desse tipo de gelo. Já a superfície de Tritão, acredita-se, possua uma camada de gelo de N2 com espessura entre 1 e 2 km. Isso sugere que é muito provável que outros planetas fora do sistema solar também possuam uma superfície rica em nitrogênio. Isso seria uma das justificativas para a hipótese de Oumuamua ser um corpo fundamentalmente composto por nitrogênio sólido.

Os cálculos apresentados na Ref. [6] são interessantes e relativamente sofisticados. Levando em consideração o formato do objeto, as dimensões, bem como o albedo, além de transformar esse último parâmetro para um raio médio do objeto, assumindo o formato 6:6:1, os autores fazem uma predição para a aceleração não gravitacional devido à sublimação e à ejeção de matéria, admitindo-se o corpo sendo constituído por um desses compostos: CO2, NH3, O2, N2, CO, CH4 e Ne. Os dados experimentais são compatíveis com N2.

Adicionalmente, os autores da Ref. [6] acreditam que talvez, surpreendetemente como eles mesmos afirmam, um fragmento de gelo N2 possa sobreviver à passagem pelo perihélio a uma distância de apenas 0,255 ua (cerca de 38,25 milhões de quilômetros), em parte porque o resfriamento evaporativo mantém a superfície com uma temperatura inferior a 50 K. Ou seja, apesar de Oumuamua ter passado mais perto do Sol do que a órbita de Mercúrio, a superfície do objeto manteve-se tão baixa como aquela de Plutão. Contudo, a volatilidade do N2 levou a uma significativa perda de massa segundo os autores da Ref. [6]: sua passagem pelo sistema solar o deixou com apenas 8% da massa que ele possuía ao chegar. Isso explicaria também o aspecto exótico do seu formato.

Essas são as hipóteses mais discutidas nos últimos anos sobre o que Oumuamua realmente seja. Mais estudos certamente poderão ajudar a entender melhor o que seja esse interessante objeto astronômico, principalmente se um outro com características semelhantes adentrar no sistema solar e puder ser estudado com mais cuidado. 

[1] Knight, M. M., Protopapa, S., Kelley, M. S. P., et al. 2017, ApJL, 851, L31.

[2] Jewitt, D., Luu, J., Rajagopal, J., et al. 2017, ApJL, 850, L36.

[3] D. Seligman, G. Laughlin, Acta Pathologica Japonica, 896(1), L8. https://doi.org/10.3847/2041-8213/ab963f. 

[4] S. Bialy, A. Loeb, 2018, ApJL, 868:L1

[5] A. Loeb, "Extraterrestrial: The First Sign of Intelligent Life beyond Earth", Houghton Mifflin Harcourt: Boston, New York, 2021.

[6] A.P. Jackson, S.J. Desch, JGR Planets, 10.1029/2020JE006706.

[7] A.P. Jackson, S.J. Desch, JGR Planets, 10.1029/2020JE006807.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Novos alótropos do carbono

Após a descoberta do grafeno, que é um alótropo bidimensional do carbono, formado por hexágonos onde os carbonos estão ligados através de ligações sp2, foram realizadas várias tentativas de se conseguir outras estruturas bidimensionais. Sabe-se que na rede hexagonal do grafeno, nanoestruturas de pares pentágonos-heptágonos são vistas como defeitos nas fronteiras de grãos. Como relatado pelos autores da Ref. [1], numerosos cálculos sugerem que o controle desses defeitos podem auxiliar na sintonia das propriedades de materiais baseados no grafeno. O hidrocarboneto cíclico insaturado pentágono-heptágono, denominado de azuleno, pode ser obtido fundido em duplas, mas a sua construção com múltiplos pares de pentágonos e heptágonos só foi reportada no ano passado através da Ref. [1]. Realizando um reação térmica com um polímero organometálico incorporado com azuleno sobre ouro, conseguiu-se sintetizar uma estrutura de carbono sp2 formada por pentágonos e heptágonos fundidos [1]. A Figura 1(a) e (b) apresenta esse tipo de estrutura, tal como já era conhecido nas fronteiras de grãos, bem como uma representação da síntese do material (Figura 1(c)) através de um novo processo.

Figura 1: (a) e (b) Representação esquemática de pares pentágono-heptágono no grafeno; (c) formação de pentágonos-heptágonos de carbono sp2 fundidos de acordo com o processo de síntese apresentado na Ref. [1].

Uma vez que há a perspectiva de que esses materiais bidimensionais de carbono possuam interessantes propriedades mecânicas, eletrônicas e de transporte, várias pesquisas buscam encontrar novos alótropos bidimensionais. Há poucos dias (21 de maio) foi apresentado na revista Science [2] o relato do crescimento de um alótropo bidimensional com anéis de quatro, seis e oito átomos de carbono hibridizados sp2, conforme representação na Figura 2.


Figura 2: Representação da estrutura planar bifenileno [2].


Para produzir esse novo alótropo do carbono utilizou-se uma metodologia bastante engenhosa. Inicialmente, partiu-se do 4,4″-dibromo-2,2′,2″,5,5′,5″-hexafluoro-1,1′:4′,1″- terphenyl (DHTP) que foi polimerizado através do chamado acoplamento debrominativo em uma superfície de ouro e os conjuntos alinhados formados por cadeias de poli(2,5-difluoro-para-fenileno) (PFPP). Segunda os autores da Ref. [2], em uma segunda etapa, essas cadeias passam a apresentar acoplamento C-C pelo fechamento do HF (HF-zipping), formando a estrutura de fifenileno. Isso permitiu a formação de ligações C-C exclusivamente entre um C-F e um C-H, mas não entre duas unidades C-H ou duas unidades C-F (na Figura 3, representado pelos ovais azuis). Como consequência, anéis de quatro e oito membros são formados seletivamente entre as cadeias. Isso mostra que as unidades C-F são essenciais para a formação da estrutura não-benzenóide. Sem essas unidades C-F, o acoplamento C-C formaria a tradicional estrutura do grafeno.

Figura 3: Representação esquemática da produção do alótropo de carbono planar bifenileno [2].

A caracterização elétrica do material revelou que trata-se de uma estrutura metálica. Isso pode ser interessante para utilizá-lo como material de anodos em baterias de lítio. Adicionalmente, essa característica também faz com que esse material se torne um candidato para fios condutores em circuitos baseados no carbono, como apontado pelos autores da Ref. [2].

Referências:
[1] I.
  • C.-Y. Hou
  • Q. Sun
  • K. Eimre
  • M. Giovannantonio
  • J.I. Urgel
  • P. Ruffieux
  • , A. 
  • Narita
  • R. Fasel
  • K. Müllen, J. Am. Chem. Soc. 142, 10291 (2020).
  • [2] Q. Fan, L. Yan, M.W. Tripp, O. Krejcí, S. Dimosthenous, S.R. Kachel, M. Chen, A.S. Foster, U. Koert, P. Liljeroth, J.M. Gottfried, Science 372, 852–856 (2021).


    sábado, 22 de maio de 2021

    Lagos e canais em Marte

    O estudo da geografia de Marte possui um capítulo bastante curioso. Ele começou a ser escrito pelo astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli que em 1877 produziu o primeiro mapa detalhado da superfície do planeta. Utilizando um telescópio de 22 cm de diâmetro ele percebeu que a superfície possuía estruturas que lembravam canais e que ele denominou de canali. Essa denominação pode ser compreendida como uma estrutura produzida artificialmente e isso alimentou como comida altamente energética o imaginário de cientistas e escritores. O próprio Schiaparelli acreditava na existência de vida no planeta, como ele assinala de forma inequívoca no seu livro Vida em Marte: "estes canais são provavelmente o principal mecanismo pelo qual a água e a vida orgânica podem ser espalhar sobre a superfície árida do planeta". Mais tarde, o astrônomo estadunidense Percival Lowell, que se notabilizou pela busca de um planeta além de Netuno, com o auxílio de telescópios maiores fez uma série de estudos sobre o planeta, confirmando a existência dos tais canais (ver Figura 1 e Figura 2).

    Figura 1: Mapa da superfície de Marte de acordo com o astrônomo Giovanni Schiaparelli (1877).

    Figura 2: Mapas da superfície de Marte de acordo com o astrônomo Percival Lowell (1894).

    Além disso, devido às mudanças sazonais que ocorrem em Marte, o que provoca mudanças de tonalidades em sua superfície, especulou-se que seriam provas da existência de vida. Entretanto, já em 1909, o astrônomo francês Camille Flammarion fez uma série de observações com um telescópio de 84 cm e não conseguiu enxergar os canais em sua superfície. Essa história tem outros fatos interessantes que não serão falados aqui, mas hoje se sabe com grande certeza que os canais eram apenas ilusões de óptica.

    O tempo passou e após aproximadamente cem anos depois vários satélites foram enviados ao planeta Marte. Durante as revoluções em torno do planeta as imagens ajudaram a revelar muitos relevos de rios e lacustres no solo marciano, indicando um passado distante no qual a água era abundante em sua superfície (note-se que esses rios não são os canali dos astrônomos do século XIX). Embora os estudos geomorfológicos sugiram fluxo de água e sua acumulação em um passado mais quente e úmido, não é possível entender como foram mantidas as condições necessárias para existir um clima úmido persistente por no mínimo uns 100.000 anos [1]. Entretanto, a presença de uma rede de vales cortando os planaltos marcianos indicam o escoamento superficial de água da chuva ou de neve derretida, que cessou há cerca de 3,7 bilhões de anos, ou seja, num tempo em que a vida ainda não havia surgido na Terra. 

    Um problema difícil de ser solucionado é a quantidade de água necessária para ter deixado essas marcas indeléveis no solo do planeta. Ou, sendo mais restrito no questionamento, quanta água líquida proveniente de chuva e de derretimento de neve estava disponível em cada estação chuvosa?

    Dados obtidos por aqueles satélites que orbitam Marte mostram que existem mais de 400 paleolagos. Existem lagos fechados, ou seja, que apresentam as bordas bem preservadas, o que permite calcular o volume máximo de água acumulada no passado, e que é exatamente o volume do buraco deixado em sua superfície. Por outro lado, existem lagos abertos, isto é, lagos que mostram que no período de chuva, ele transbordava. De acordo com os autores da Ref. [1] existe ainda uma subclasse de lagos abertos e fechados que foram alimentados pelas águas da rede de lagos durante a sua formação.

    A partir de imagens de satélite e topografia, os pesquisadores do estudo publicado na Ref. [1] examinaram 96 bacias de lagos em Marte que teriam se formado naqueles bilhões de anos atrás. Medindo esses lagos e suas bacias hidrográficas, foi possível mostrar a quantidade de chuva e de neve derretida necessária para encher as bacias intactas sem rompê-las, enquanto simultaneamente transbordava as bacias abertas. Nos casos em que uma bacia aberta e fechada eram alimentadas pelo mesmo rio, previu-se a precipitação máxima e mínima que poderia ter caído em um único evento. Em apenas uma tempestade, que pode ter durado dias ou mesmo milhares de anos, estimou-se que a precipitação em Marte ficou entre 4 e 159 metros, números realmente impressionantes.

    Além disso, embora os efeitos sejam visíveis em todo o planeta, nem todas as áreas foram afetadas da mesma forma. Alguns lagos de bacia aberta estavam em regiões que seriam consideradas 'semi-áridas' na Terra, então provavelmente receberam menos água do que partes mais úmidas. Adicionalmente, os canais mais profundos que estão sendo direcionados aos lagos foram provavelmente escavados ao longo de várias chuvas, teriam inundado os lagos em diversas ocasiões. Isso não é consenso entre todos os estudiosos, alguns deles sugerem que os vales podem ter sido escavados também por outras causas, o que superestimaria o impacto do que esperaríamos da chuva. Dessa forma, o volume de chuva do passado pode não ser o correto. De todo modo, o estudo parece fornecer algumas boas sugestões sobre o passado do planeta. Certamente, o Perseverance e o rover chinês trarão novas informações a respeito desse instigante assunto. 


    Referência:
    [1] G.S. de Quay, T.A. Goudge, C.I. Fassett, Ancient Mars Had Planet-Wide Rainstorms So Intense They Breached Its Lakes, Geology 48 (12), 1189 – 1193 (2020).

    sexta-feira, 14 de maio de 2021

    Compostos de urânio

    Há muito tempo li dois interessantes livros de divulgação científica sugeridos pelo saudoso Prof. Rubens de Azevedo e escritos por Rômulo Argentiere: 'Átomos para a Guerra' e 'Átomos para a Paz'. Encontrei-os em um sebo em Fortaleza lá pelos idos de 1979/1980, o que não foi tarefa difícil, haja vista que Argentiere foi um dos grandes divulgadores brasileiros de ciências do século passado [1]. Tratavam-se de explicações de como a energia nuclear poderia ser usada pela humanidade, trazendo benefício ou então, levando-a à destruição através de armas poderosíssimas. Mesmo sendo um livro de divulgação apresentava alguns aspectos técnicos que eu não compreendia. Entretanto, se destacava para mim, e acredito que para todos os leitores, o fato de que o urânio era um personagem central naquela história sobre a aplicação da radioatividade.

    O urânio é o elemento químico natural com maior número atômico, 92, o que significa que no seu núcleo existem 92 prótons. Para manter a estabilidade desse núcleo é necessário um grande número de nêutrons. A maior parte do urânio existente é urânio-238 (99.27%), que contém 146 nêutrons, enquanto que em pequena quantidade existem o urânio-235 (0.72%), que contém 143 nêutrons e o urânio-234 (0,01%), que conta com 142 nêutrons. É possível também sintetizar vários outros isótopos de urânio com o núcleo contendo entre 125 e 150 nêutrons. A partir do urânio pode-se produzir o elemento químico plutônio através de uma reação onde o netúnio é um elemento químico intermediário. A equação abaixo ilustra essa reação [2]:
    ,
    onde D representa o deutério, n representa um nêutron, e- representa um elétron e ne (com uma barra) representa um antineutrino do elétron.  

    O urânio pode aparecer em diferentes estados de oxidação (III, IV, V, VI), o que permite que ele forme um grande número de compostos químicos. Na natureza, o urânio pode ser obtido a partir de diversos minerais. Um mineral que contém grande quantidade desse elemento químico é a plechebenda (UO2, UO3 + ThO2, CeO2) que é uma mistura de óxidos, e que após beneficiado se transforma no óxido de urânio (U3O8), um concentrado conhecido como yellowcake. É interessante lembrar que a partir da plechebenda, Pierre Curie e Marie Curie - num trabalho hercúleo de purificação - descobriram dois novos elementos químicos bastante radioativos, o polônio e o rádio. Outros minerais que também contêm urânio são a carnotita (K2(UO2)2(VO4)2·2H2O), a autunita (Ca(UO2)2 (PO4)2·nH2O), o uranofan (CaO·UO2·2SiO2·6H2O) e a cofinita, U(SiO4)(OH)4, entre outros.

    Um aspecto interessante do urânio-238 é que a sua meia-vida é de 4,5 bilhões de anos. Isso significa que ele pode ser utilizado para fazer a datação de rochas muito antigas existentes no nosso planeta. Em outras palavras, dependendo da quantidade de urânio-238 presente numa rocha, pode-se determinar a sua idade.

    O urânio (IV) é o estado de oxidação dominante de urânio na crosta terrestre. Ele é encontrado em grande quantidade na uraninita UO2+d, e na cofinita, USiO4, além também de minerais bastante raros, como a behounekita, U(SO4) (H2O)[3]. Entretanto, o urânio (VI) é o mais estável; quando exposto à água, o urânio (VI) rapidamente forma o íon uranil UO22+. É importante destacar que em certas circunstâncias é desejável reduzir o U(VI) mais móvel do ponto de vista ambiental, para o menos móvel U(IV) de tal forma que se consiga a sua imobilização e deixe o ambiente mais protegido em relação à radiotoxidade [3].


    É conhecido da literatura que há várias formas de se reduzir o U(VI) para o U(IV). Uma maneira bastante estudada é a redução fotoquímica do uranil. Na presença de álcoois, formatos e oxalatos, o urânio pode ser reduzido fotoquimicamente ao UO2e ao U(IV). No caso particular dos sulfatos uranil, as unidades estruturais consistem em cadeias de poliedros uranil e tetraedros sulfatos. Os sulfatos uranil (IV) podem aparecer como estruturas em cadeia, estruturas em camada ou como estruturas do tipo framework [3]. A Figura 1 apresenta uma vista da estrutura cristalina do U3H2(SO4)7 (H2O)5.3H2O, de acordo com a Ref. [3] e a Tabela 1 apresenta os parâmetros cristalográficos de diversos sulfatos de urânio.


    Figura 1: Representação do cristal de U3H2(SO4)7 (H2O)5.3H2O [3].

    Tabela 1: Parâmetros cristalográficos de alguns cristais de sulfato de urânio [3].

    O urânio também pode formar algumas soluções sólidas, por exemplo, com o tório. Sabe-se que o USiO4 cristaliza-se numa estrutura tetragonal, sendo isoestrutural à zircônia (ZrSiO4), ao hafnon (HfSiO4) e à torita (ThSiO4). Sob condições hidrotérmicas, o USiO4 forma uma solução sólida com o ZrSiO[4]. 

    Uma maneira complementar de se estudar materiais de uma forma geral, e compostos de urânio em particular, é através de simulações computacionais que, eventualmente, podem revelar interessantes características. Uma das possíveis maneiras é através de cálculos de primeiros princípios, como o Density Funcional Theory (DFT). Nesses cálculos eventualmente surgem problemas quando se está abordando materiais com elétrons f. Isso pode introduzir erros graves e, por exemplo, predizer que muitos semicondutores apresentem estados metálicos. Como consequência, correções adicionais além do cálculo tradicional usualmente utilizados para a maioria dos outros elementos químicos tornam-se necessárias. Num estudo recente foram realizados cálculos em quatro substâncias que são importantes no campo de combustíveis nucleares, UC, UN, UO2, and UCl3, fornecendo informações sobre a dependência de estados metaestáveis nas propriedades físicas desses materiais [5]. A conjunção entre investigações experimentais e simulações computacionais é uma tendência forte no estudo dessa família de compostos, aliás, assim como na maioria das áreas das ciências de materiais.

    Referências:
    [1] P.V. Mauso, Por que Rômulo Argentiere foi tão importante para a ciência brasileira?, Super Interessante, 30/11/2002, atualizado 05/11/2016, https://super.abril.com.br/historia/romulo-argentiere/ (consultado em 14/05/2021).
    [2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Ur%C3%A2nio (consultado em 14/05/2021).
    [3] L. Zhang et al., Inorg. Chem. 59, 5813 (2020).
    [4] S. Labs et al., Environ. Sci. Technol. 48, 854 (2014).
    [5] M.S. Christian et al., J. Phys. Chem. A 125, 2791 (2021).


    sábado, 27 de fevereiro de 2021

    Aplicação de nanomateriais

    Nanomateriais são materiais construídos ou produzidos na escala nanométrica (um nanômetro é igual a 10-9 m = 0,000000001 m). Existem diversas técnicas que podem ser utilizadas para fabricar esses materiais e nas últimas décadas eles têm sido utilizados com mais frequência devido a interessantes novas propriedades físicas e químicas que apresentam, quando comparados com a mesma substância em uma maior escala, não-nanométrica (que os cientistas denominam de bulk). 

    Na verdade, alguns artesãos da Idade Média já trabalhavam com nanomateriais. Para modificar as cores dos vidros que formavam os vitrais das igrejas da Idade Média, os artistas adicionavam cloreto de ouro ao vidro fundido. Com essa metodologia eram criadas esferas de ouro com cerca de 25 nanômetros (nm), o que fazia com que a luz espalhada por elas fosse na cor vermelha. Se as esferas de ouro tivessem 50 nm, a cor obtida era o verde, e dependendo das suas dimensões outras cores poderiam ser obtidas. Obviamente, os artistas não sabiam da formação dessas nano-esferas, e nem tinham entendimento do que significava a escala nano, mas a experiência acumulada ao longo do tempo permitiu essa descoberta.


    Vitral da Catedral de Lyon.


    Na atualidade, os nanomateriais têm sido utilizados em aplicações tecnológicas relacionadas à geração e armazenamento de energia, em materiais lubrificantes, em sistemas de produção de biocombustíveis, em medicamentos, em diversas áreas da medicina (incluindo terapia anti-câncer e sensores para a análise de sangue), em cosméticos, na agricultura, na detecção de contaminantes de várias substâncias, em cerâmicas, além de diversas outras aplicações. Por conta disso, os nanomateriais já estão presentes em diversos produtos comerciais como cosméticos, tintas, eletrodomésticos e equipamentos.

    Alguns exemplos clássicos de aplicação destes materiais são as nanopartículas de óxido de titânio e óxido de zinco, que quando adicionadas a protetores solares conseguem absorver a radiação ultravioleta, que de uma forma geral é prejudicial à pele dos seres humanos. Nanoemulsões, produzidas a partir de óleo, água e surfactantes, também têm sido utilizadas com bastante frequência em substâncias da indústria cosmética [1]. Outra aplicação interessante, entre várias outras, é o uso de nanomateriais como purificadores de água [2] e descontaminantes ambientais [3]. A descontaminação do ambiente tem como objetivos o tratamento do solo, da água de superfície, dos lençóis freáticos e do ar. A nano-descontaminação ambiental tem sido utilizada para a remoção de vários contaminantes de naturezas orgânica e inorgânica. A ideia geral é usar um nanomaterial reativo para transformar a substância tóxica presente no ambiente em uma substância menos agressiva [3, 4]. 

    Muitos livros encontrados na literatura discorrem sobre esse tema fascinante, que são os nanomateriais. Esses livros e diversos tratados abordam tanto a ciência que explica os fenômenos relacionados com os nanomateriais, quanto a tecnologia que pode ser construída a partir deles. Uma busca rápida na grande rede mostra centenas de interessantes obras.

    Está disponível online a partir de hoje a obra "Nanomaterials and Nanotechnology: Biomedical, Environmental, and Industrial Applications", publicada pela editora Springer. O livro, que teve a contribuição de diversos autores, trata de vários aspectos relacionados com a aplicação de biomateriais na biomedicina, no meio ambiente e na indústria. Ele foi editado por pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (R.F. do Nascimento, P.B.A. Fachine e P.T.C. Freire) e da Universidade Estadual do Ceará (V.O. Sousa Neto). Mais informações sobre a obra podem ser obtidas no link

    https://link.springer.com/book/10.1007/978-981-33-6056-3

    Entre os vários assuntos abordados nesse livro estão: aplicação em medicina, biopolímeros, zeólitas magnéticas, nanomateriais para remediar contaminação de água, contaminantes de leite, indústria têxtil, terapia anti-câncer, células solares, interação de nanopartículas com sistemas biológicos, entre outros.




    Consideremos, por exemplo, a aplicação de nanomateriais como adsorventes para determinadas aplicações no tratamento de água e de resíduos. Muitos nanomateriais possuem interessantes propriedades adsortivas, como a grande área superficial devido às suas pequenas dimensões, o que permite um aumento da capacidade de adsorção e boa atividade catalítica. Também devido às suas dimensões diminutas, os nanomateriais possuem grande mobilidade em meios aquosos, tornando-os potenciais adsorbentes para a remoção de diferentes poluentes como íons metálicos tóxicos, compostos inorgânicos e orgânicos e mesmo, bactérias.

    Uma classe importante de adsorbantes nanoestruturados são os adsorbentes magnéticos, especialmente aqueles contendo óxidos de ferro nanoestruturados que têm a finalidade de resolver alguns problemas relacionados ao meio ambiente. Por exemplo, zeólitas nanoestruturadas naturais ou nanopartículas de magnetita têm sido utilizadas há algum tempo na fotodegradação e remoção de corantes do ambiente, mostrando grande eficiência na purificação da água e na separação de poluentes tóxicos [5]. A síntese dos compósitos magnetita-zeolita pode ser conseguida através de diversas metodologias. O método mais comum consiste na incorporação de nanopartículas de magnetita sobre a superfície da zeólita, embora também seja possível a síntese de nanopartículas de magnetita dentro de cristais de zeólita. A maioria dos compósitos magnetita-zeólita são produzidas pela primeira metodologia, que apresenta várias vantagens como a simplicidade e o custo relativamente baixo. A desvantagem possível através desse método é que as partículas sobre a superfície das zeólitas podem ser oxidadas, perdendo parte de suas propriedades magnéticas. Estudos com a zeólita magnética NaY indicam que ela possui uma boa capacidade de remoção de íons metálicos tóxicos Cd2+ e Cu2+ do solo e da água. Por outro lado, a síntese de zeólitas magnéticas pela introdução de nanopartículas nos cristais de zeólitas é um método um pouco mais complexo. As nanopartículas magnéticas devem se acomodar dentro dos cristais de zeólitas e a síntese dessas últimas deve ser feita na presença do material magnético [5].

    Outra aplicação de nanomateriais ocorre na agricultura. Essa utilização tem crescido nos anos recentes devido à necessidade de desenvolvimento sustentável. Assim, nanomateriais sevindo como fertilizantes e pesticidas usados em solos para controlar nutrientes, proteger de pestes e descontaminar a água são relevantes para se aumentar a produtividade associada a uma menor degradação do meio ambiente.

    No que diz ao tratamento de água, a nanotecnologia tem trazido interessantes respostas a problemas gerados pela poluição [6]. Nesse sentido, nanomateriais são produzidos com propriedades físico-químicas úteis para a remoção ou a eliminação de poluentes da água. São, portanto, úteis nos processos de reciclagem de água, sendo utilizados na adsorção e separação, na detecção e no monitoramento, na desinfecção e na catálise. Os óxidos metálicos constituem uma importante classe de nanomateriais devido principalmente às suas características catalíticas, sensitividade e atividade seletiva. Os nanomateriais à base de cobre também são materiais de grande importância devido às suas propriedades químicas, elétricas e térmicas. Nanomateriais com cobre têm se mostrado eficiente e uma alternativa de baixo custo para o tratamento de efluentes. Vários métodos foram desenvolvidos nos últimos tempos para se obter esse tipo de material como redução química, decomposição térmica, microondas, entre outros. Assim, foi possível, por exemplo, utilizar cobre de valência zero na remoção de nitratos de águas de superfície. O cobre de valência zero também foi utilizado na degradação do metil laranja presente na água. Nanomateriais à base de ferro também têm sido utilizados na descontaminação de água, principalmente pelo fato de que ferro de valência zero tem sua reatividade aumentada quando ele é nanoestruturado. Os mecanismos envolvidos compreendem a redução, a adsorção, a precipitação/co-precipitação, além de outros efeitos em nanoescala. Obviamente, para a compreensão desses fenômenos, diversas técnicas experimentais são utilizadas, como a técnica XPS, que mostra a composição química e os estados dos metais na superfície dos materiais.

    No que diz respeito à aplicação na medicina, existe uma gama de possibilidades. Nanopartículas poliméricas - usando-se polímeros naturais, sintéticos ou semi-sintéticos (proteínas, celulose, quitosana; polianidritos alifáticos; alginatos, etc) podem ser utilizados em nanosistemas carregadores de fármacos. A escolha do polímero a ser utilizado, em geral, dependerá das características físico-químicas do fármaco a ser encapsulado, como a polaridade. Nanotubos de carbono já foram estudados com a finalidade de também serem utilizados como carregadores de fármacos, embora a sua alta toxicidade tem impedido a sua ampla utilização. As nanopartículas de ouro, por seu turno, se destacam como nanopartículas metálicas com aplicação na medicina por serem inertes e bastante estáveis frente à oxidação. Nanopartículas de prata são utilizadas como agentes antimicrobianos e como carregadores de fármacos. Devido à sua relativa toxidade em relação às células humanas, há a necessidade das nanopartículas de prata serem recobertas com polímeros apropriados [7].

    Nessa rápida discussão é possível perceber que o campo de aplicação das nanopartículas é muito amplo. O conhecimento a ele associado está se expandido de uma maneira bastante rápida. Durante a próxima década é possível que espetaculares avanços e descobertas sejam conseguidos. 

    [1] G.J. Nohynek, J. Lademann, C. Ribaud, M.S. Roberts, Crit. Rev. Toxicol. 37, 251 (2007).

    [2] Y. Chen, J.C. Crittenden, S. Hackney, L. Sutter, D.W. Hand, Environ. Sci. Technol. 39, 1201 (2005).

    [3] V.O. Sousa Neto, P.T.C. Freire, R.F. Nascimento, Ground remediation using nanomaterials, in: Nanomaterials Applications for Environmental Matrices: Water, Soil and Air, Ed. R.F. Nascimento, O.P. Ferreira, A.J. Paulo, V.O. Sousa Neto, Elsevier 2019, Chap. 12, p. 381-402.

    [4] V.O. Sousa Neto, P.T.C. Freire, R.F. Nascimento, Removal of pesticides and volatile organic pollutants with nanoparticles, in: Nanomaterials Applications for Environmental Matrices: Water, Soil and Air, Ed. R.F. Nascimento, O.P. Ferreira, A.J. Paulo, V.O. Sousa Neto, Elsevier 2019, Chap. 13, p. 405-426.

    [5] C.B. Vidal et al., Magnetite-zeolite nanocomposite applied to remediation of polluted aquaatic environments, in: Nanomaterials and Nanotechnology: Biomedical, Environmental, and Industrial Applications, Ed. R.F. Nascimento, V.O. Sousa Neto, P.B.A. Fechine, P.T.C. Freire, Springer 2021, Chap 3, p. 69-94.

    [6] V.O. Sousa Neto et al., Progress and challengers of nanomaterials in water contamination, in: Nanomaterials and Nanotechnology: Biomedical, Environmental, and Industrial Applications, Ed. R.F. Nascimento, V.O. Sousa Neto, P.B.A. Fechine, P.T.C. Freire, Springer 2021, Chap 7, p. 217-238.

    [7] L.C.C. Fernandes et al., Nanotechnology: concepts and potential applications in medicine, in: Nanomaterials and Nanotechnology: Biomedical, Environmental, and Industrial Applications, Ed. R.F. Nascimento, V.O. Sousa Neto, P.B.A. Fechine, P.T.C. Freire, Springer 2021, Chap 3, p. 1-39.

    quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

    Superfície de Marte

           Existem diversas evidências de que grandes modificações na superfície do planeta Marte sejam devidas ao movimento de gelo ou materiais contendo gelo, principalmente em médias latitudes. Estudos realizados há algum tempo pela nave orbital Viking identificaram formas geomórficas que foram interpretadas como sendo oriundas de fluxo viscoso de materiais ricos em gelo. Supõe-se inclusive que deva existir gelo quase puro, sem muita impureza, debaixo de detritos [1]. 

           Para continuar a discussão é interessante citar os principais períodos geológicos de Marte, quais sejam, Pre-Noachian, Noachin, Hesperian e Amazônico (que ainda é subdividido em Recente, Médio e Antigo). O período Amazônico é o período atual e se estende até cerca de 3 bilhões de anos atrás. Esse período tem o seu nome originado da Planície Amazônia (Amazonis Planitia), que é uma região da superfície marciana com um número pequeno de crateras. 

              Acredita-se que o grau de preservação de depósitos de gelo variem nas latitudes médias de acordo com a própria latitude, a elevação e a topografia. No artigo da Ref. [1], por exemplo, os autores investigam Detalhes de Fluxo Viscoso (Viscous Flow Features, VFF) na parte noroeste do Nereidum Montes, que fica localizado em latitudes médias do hemisfério sul. Os autores procuram entender quatro aspectos principais: (1) o porquê dessa região possuir uma grande concentração de VFF; (2) qual é a concentração de gelo; (3) quando e como eles foram formados; (4) como esses VFF podem ser comparados com aqueles de outras regiões.

    Figura 1: Vista da planície Argyre e dos Nereidum Montes (coloração artificial, Ref. [1]).

             O Nereidum Montes é um arco montanhoso com elevações que chegam até 4000 m. No trabalho da Ref. [1] os autores utilizaram diversos equipamentos, como o High Resolution Imaging  Science Experiment (HiRISE) para imagens detalhadas do mapeamento geomorfológico; o MRO Shallow Radar (SHARAD) para análise da subsuperfície e o MGS, o MOLA e o DEM para análise topográficas. Os estudos por mapeamento e radar indicam que o Nereidum Montes pode ser uma das regiões mais ricas em gelo nas latitudes médias marcianas no hemisfério sul Modelos sugerem que a deposição de gelo no Nereidum Montes provavelmente ocorreu na Época Amazônica Recente (Late Amazonian) durante período de alta obliquidade, enquanto que o seu escorregamento, que deixou marcas VFF no terreno, ocorreu há poucos milhões de anos. Os autores da Ref. [1] acreditam que devido ao grande número dessas marcas na região do Nereidum Montes, ele contenha uma provisão de gelo potencialmente maior do que em outras regiões de altas concentrações.

               Muitos esforços já foram realizados para se obter um entendimento acerca do planeta Marte de uma forma mais aprofundada. Em 1971 a espaçonave Mariner 9 orbitou o planeta. Em 1975, através das missões Viking, um equipamento foi colocado na superfície do planeta. Em 2018, existiam seis diferentes satélites orbitando o planeta (Mars Reconnaissance Orbiter, Mars Express, Mars Odyssy, Mars Atmosphere and Volatile Evolution, Mars Orbiter Mission and ExoMars Trace Gas Orbiter). Para obter dados sobre o planeta vermelho foram enviados veículos robôs (rovers) que coletaram uma grande gama de imagens e informações. Um deles foi o Spirit, que pousou na cratera Gusev e ficou ativo entre 03 de janeiro de 2004 e 22 de março de 2010. Outro foi o Opportunity, que aterrisou no Meridiani Planum em 25 de janeiro de 2004 e ficou ativo até 10/06/2018, quando ficou encoberto por uma tempestade de poeira, danificando as suas baterias. O terceiro foi o Mars Science Laboratory Curiosity (que pousou na cratera Gale e operou entre 2012 e 2019), todos da Nasa. À propósito, diversas belas imagens da superfície do planeta obtidas pelo Opportunity e pelo Curiosity podem ser vistas no YouTube, utilizando-se o seguinte endereço: https://www.youtube.com/watch?v=ZEyAs3NWH4A.   

               No artigo da Ref. [2] os autores fazem uma revisão dos estudos sobre o clima de Marte próximo à superfície, com ênfase nos ciclos de poeira, CO2 e água e o impacto sobre as condições termodinâmicas próximas da superfície. Alguns dos parâmetros fornecidos: opacidade da atmosfera, pressão atmosférica, temperatura do ar próximo à superfície, temperatura do solo, velocidade e direção do vento próximo à superfície, humidade relativa do ar próximo à superfície e quantidade de vapor d'água. Numa escala global, a circulação atmosférica marciana sofre forte influência da sublimação e deposição sazonal de gás carbônico a altas latitudes. A inclinação do planeta (25,2 graus) e a grande excentricidade (e=0,0934) da órbita faz com que o hemisfério sul tenha verões mais quentes e curtos e invernos mais frios e longos do que o do hemisfério norte. Além do ciclo do CO2, o ciclo de poeira tem um forte impacto na atmosfera marciana. Grandes quantidades de poeira são transportadas na atmosfera de Marte. As tempestades de poeira mais fortes ocorrem durante a primavera e o verão do hemisfério sul [3]. Acrescenta-se que eventos regionais de poeira também acontecem durante a primavera e o verão do hemisfério norte, mas eles são menos eficientes no aumento da opacidade de poeira do que os seus equivalentes do hemisfério norte. Marte também apresenta um forte ciclo H2O sazonal no qual a água é trocada entre a superfície e a atmosfera através de diversos processos, e então redistribuído na atmosfera. Os reservatórios de água sazonal incluem gelo de água nas calotas polares, gelo superficial ou subsuperficial em regiões de altas latitudes e possivelmente soluções salinas líquidas sob a superfície.

            No que diz respeito à pressão atmosférica de Marte, os pesquisadores apontam que muitos processos definem as variações da pressão em sua superfície. Em escalas de tempos longas, denominadas escalas sazonais, variações na massa atmosférica devido à condensação e sublimação sazonal das calotas polares, composta principalmente por CO2, produz grande variação de pressão [2]. Em escala de dias a meses, a circulação tropical e ondas estacionárias são fatores dominantes na variação desse parâmetro. Há também modificações na pressão em escalas de tempo diurna e em escalas de tempo variando entre uns poucos segundos a alguns minutos. O valor da pressão atmosférica em Marte varia entre 650 e 1050 Pa [2], ou seja, cerca de 1% da pressão atmosférica da Terra (101,3 kPa). No que diz respeito à água, há grandes reservatórios dessa substância como gelo e vapor em Marte, embora água líquida pura seja improvável de ser encontrada sobre a superfície do planeta. Entretanto, a presença de gelo de água sob a superfície em latitudes médias e em regiões polares e também a existência de percloratos nos solos polares e equatoriais pode permitir que ele liquefaça o gelo marciano em algumas situações, produzindo água salgada líquida [2].

              Essas e muitas outras informações foram obtidas a respeito da superfície de Marte com o uso de diversos equipamentos colocados na sua superfície, como comentado anteriormente, bem como de dados obtidos por diversos satélites que circulam em órbita do planeta. Brevemente, novos dados estarão disponíveis através da missão Perseverance. Hoje, 18/02/2020, chegou à Marte, mais precisamente na cratera Jezero - que possui 40 km de diâmetro e 500 m de profundidade - o rover Perseverance, que foi lançado da Terra em 30/07/3030. Esse equipamento fornecerá informações ainda mais precisas sobre a constituição do planeta, em particular fazendo testes delicados sobre a existência ou não de vida. Entre os equipamentos, estará um espectrômetro Raman, que fará análise do solo e tentará encontrar evidências de matéria orgânica sob a superfície do planeta. A primeira foto da superfície, tirada há poucos minutos, é apresentada abaixo.


    Figura 2: Primeira foto da superfície marciana tirada pela Perseverance, há poucos minutos (18/02/2021). [Hello, world. My first look at my forever home. #CountdownToMars].


    [1] D.C. Berman, F.C. Chuang, I.B. Smith, D.A. Crown, Ice-rich landforms of the southern mid-latitudes of Mars: A case study in Nereidum Montes, Icarus 355, 114170 (2021).

    [2] G.M. Martínez et al., The modern near-surface Martian climate: a review of in-situ meteorological data from Viking to Curiosity, Space Science Reviews 212, 295 - 338 (2017).

    [3] L. Montabone, F. Forget, E. Millour, R.J. Wilson, S.R. Lewis, D. Kass, A. Kleinboehl, M.T. Lemmon, M.D. Smith, M.J. Wolff, Eight-year climatology of dust optical depth on Mars. Icarus 251, 65–95 (2015).