sábado, 22 de maio de 2021

Lagos e canais em Marte

O estudo da geografia de Marte possui um capítulo bastante curioso. Ele começou a ser escrito pelo astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli que em 1877 produziu o primeiro mapa detalhado da superfície do planeta. Utilizando um telescópio de 22 cm de diâmetro ele percebeu que a superfície possuía estruturas que lembravam canais e que ele denominou de canali. Essa denominação pode ser compreendida como uma estrutura produzida artificialmente e isso alimentou como comida altamente energética o imaginário de cientistas e escritores. O próprio Schiaparelli acreditava na existência de vida no planeta, como ele assinala de forma inequívoca no seu livro Vida em Marte: "estes canais são provavelmente o principal mecanismo pelo qual a água e a vida orgânica podem ser espalhar sobre a superfície árida do planeta". Mais tarde, o astrônomo estadunidense Percival Lowell, que se notabilizou pela busca de um planeta além de Netuno, com o auxílio de telescópios maiores fez uma série de estudos sobre o planeta, confirmando a existência dos tais canais (ver Figura 1 e Figura 2).

Figura 1: Mapa da superfície de Marte de acordo com o astrônomo Giovanni Schiaparelli (1877).

Figura 2: Mapas da superfície de Marte de acordo com o astrônomo Percival Lowell (1894).

Além disso, devido às mudanças sazonais que ocorrem em Marte, o que provoca mudanças de tonalidades em sua superfície, especulou-se que seriam provas da existência de vida. Entretanto, já em 1909, o astrônomo francês Camille Flammarion fez uma série de observações com um telescópio de 84 cm e não conseguiu enxergar os canais em sua superfície. Essa história tem outros fatos interessantes que não serão falados aqui, mas hoje se sabe com grande certeza que os canais eram apenas ilusões de óptica.

O tempo passou e após aproximadamente cem anos depois vários satélites foram enviados ao planeta Marte. Durante as revoluções em torno do planeta as imagens ajudaram a revelar muitos relevos de rios e lacustres no solo marciano, indicando um passado distante no qual a água era abundante em sua superfície (note-se que esses rios não são os canali dos astrônomos do século XIX). Embora os estudos geomorfológicos sugiram fluxo de água e sua acumulação em um passado mais quente e úmido, não é possível entender como foram mantidas as condições necessárias para existir um clima úmido persistente por no mínimo uns 100.000 anos [1]. Entretanto, a presença de uma rede de vales cortando os planaltos marcianos indicam o escoamento superficial de água da chuva ou de neve derretida, que cessou há cerca de 3,7 bilhões de anos, ou seja, num tempo em que a vida ainda não havia surgido na Terra. 

Um problema difícil de ser solucionado é a quantidade de água necessária para ter deixado essas marcas indeléveis no solo do planeta. Ou, sendo mais restrito no questionamento, quanta água líquida proveniente de chuva e de derretimento de neve estava disponível em cada estação chuvosa?

Dados obtidos por aqueles satélites que orbitam Marte mostram que existem mais de 400 paleolagos. Existem lagos fechados, ou seja, que apresentam as bordas bem preservadas, o que permite calcular o volume máximo de água acumulada no passado, e que é exatamente o volume do buraco deixado em sua superfície. Por outro lado, existem lagos abertos, isto é, lagos que mostram que no período de chuva, ele transbordava. De acordo com os autores da Ref. [1] existe ainda uma subclasse de lagos abertos e fechados que foram alimentados pelas águas da rede de lagos durante a sua formação.

A partir de imagens de satélite e topografia, os pesquisadores do estudo publicado na Ref. [1] examinaram 96 bacias de lagos em Marte que teriam se formado naqueles bilhões de anos atrás. Medindo esses lagos e suas bacias hidrográficas, foi possível mostrar a quantidade de chuva e de neve derretida necessária para encher as bacias intactas sem rompê-las, enquanto simultaneamente transbordava as bacias abertas. Nos casos em que uma bacia aberta e fechada eram alimentadas pelo mesmo rio, previu-se a precipitação máxima e mínima que poderia ter caído em um único evento. Em apenas uma tempestade, que pode ter durado dias ou mesmo milhares de anos, estimou-se que a precipitação em Marte ficou entre 4 e 159 metros, números realmente impressionantes.

Além disso, embora os efeitos sejam visíveis em todo o planeta, nem todas as áreas foram afetadas da mesma forma. Alguns lagos de bacia aberta estavam em regiões que seriam consideradas 'semi-áridas' na Terra, então provavelmente receberam menos água do que partes mais úmidas. Adicionalmente, os canais mais profundos que estão sendo direcionados aos lagos foram provavelmente escavados ao longo de várias chuvas, teriam inundado os lagos em diversas ocasiões. Isso não é consenso entre todos os estudiosos, alguns deles sugerem que os vales podem ter sido escavados também por outras causas, o que superestimaria o impacto do que esperaríamos da chuva. Dessa forma, o volume de chuva do passado pode não ser o correto. De todo modo, o estudo parece fornecer algumas boas sugestões sobre o passado do planeta. Certamente, o Perseverance e o rover chinês trarão novas informações a respeito desse instigante assunto. 


Referência:
[1] G.S. de Quay, T.A. Goudge, C.I. Fassett, Ancient Mars Had Planet-Wide Rainstorms So Intense They Breached Its Lakes, Geology 48 (12), 1189 – 1193 (2020).

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