quarta-feira, 13 de março de 2024

Evariste Galois

Uma equação algébrica de até quarto grau, ax4 + bx3 + cx2 + dx + e = 0 pode ser resolvida algebricamente. Isso significa que através de um número finito de operações de soma, subtração, multiplicação, divisão, potencialização inteira e radiciação aplicadas aos seus coeficientes, pode-se obter suas raízes. Para se chegar a esse conhecimento, muitos matemáticos deram importantes contribuições como, numa lista não exaustiva: Nicolò Fontana Tartaglia, Girolano Cardano, Ludovico Ferrari, François Viète, Friedrich Gauss, etc.

Embora em algumas situações particulares seja possível descobrir-se expressões para equações algébricas de quinta ordem ou superiores, de uma forma geral não existem soluções algébricas para equações desse tipo. Isso foi provado por dois matemáticos que tiveram vidas breves e mortes trágicas: Niels Henrik Abel (1802 - 1829) e Évarist Galois (1811 - 1832). Em outra postagem falaremos de Abel, autor da obra "Mémoire sur les équations albébriques au on démontre l'impossibilité de la resolution de l'equation général du cinquiènne dégré". Por enquanto ficaremos restrito a falar de Galois.



Evarist Galóis nasceu em 25 de outubro de 1811 em Bourg-la-Reine. Como estudante estava apenas interessado em matemática e bem novo estudou obras de Euler, Gauss e Jacobi. Em 1828 tentou entrar na École Polytechnique, mas foi reprovado. No dia primeiro de abril de 1829 pubu nos Annales de Gergonne, "Demonstração de um teorema sobre as frações contínuas periódicas". Em 25 de maio apresentou na Academia de Ciências de Paris, "Pesquisas sobre equações algébricas de grau primo". Cauchy foi designado como relator e disse a Galóis que precisaria resumir o trabalho para a Academia. Em 1829 foi reprovado pela segunda vez na admissão à Escola Politécnica e alguns dias depois seu pai se suicidou.

No outono de 1829 foi admitido na École Normale Supérieure e no primeiro semestre de 1830 publicou três trabalhos no Bulletin de Ferrussac: "Análise de uma memória sobre a resolução algébrica de equações"; "Resolução de equações numéricas" e "Teoria dos números". Quanto ao trabalho, Cauchy acabou não lendo na Academia, mas sugeriu que Galois fizesse algumas modificações e o submetesse ao Grande Prêmio de Matemática da Academia que seria anunciado em 1830. Mas o manuscrito perdeu-se e Galois teve que reescrevê-lo de memória e escreveu uma obra mais ampla intitulada: "Memória sobre as condições de solubilidade das equações por radicais". Então, Fourier foi dessa vez designado para ler o trabalho na Academia, mas morreu e o manuscrito novamente sumiu e Galois não chegou nem a concorrer. Em 17 de janeiro de 1831, por incentivo de Poisson, Galois apresentou pela terceira vez o seu artigo à Academia. Devido a suas posições políticas foi preso entre 14/07/31 a 16/03/32. Na prisão, soube que Poisson lera à Academia o seu relatório, desaprovando o trabalho. Da prisão começou a escrever o trabalho "Duas Memórias de Análise Pura" e escreveu um artigo "Nota sobre Abel" mostrando que a demonstração daquele e a sua, apresentando a impossibilidade de se resolver algebricamente equações de quinta ordem ou superiores eram diferentes. No ano seguinte, conheceu uma mulher e num episódio confuso, por causa dela, foi desafiado para um duelo com um antigo camarada de lutas políticas. Na noite anterior, sabendo que iria morrer, escreveu uma carta a um amigo, onde deixa o seu testamento científico. No duelo, recebeu uma bala no abdômen e faleceu no dia seguinte, a 31 de maio de 1832.

Para seus companheiros de lutas políticas escreveu: "Meus amigos, fui desafiado por dois patriotas... Foi-me difícil recusar. Eu morro vítima de uma infame leviana e de dois tolos desta leviana. É dentro de um miserável mexerico que se extingue minha vida." E para Auguste Chevalier, que considerava o seu melhor amigo, escreveu o seu testamento científico, varando a madrugada que antecedeu o  duelo e que ele sabia que seria derrotado: "Meu querido amigo, eu fiz em análise várias coisas novas. Umas concernentes à teoria das equações; outras concernentes às funções integrais". Então Galòis escreve dezenas de páginas explicando  a teoria das equações, vários teoremas demonstrando a teoria de grupos, melhorou a memória que fora reprovada por Poisson. Acrescentou: "Várias vezes em minha vida eu me arrisquei a avançar proposições das quais eu não estava seguro. Mas tudo o que acabo de escrever está em minha cabeça há bastante tempo e é de meu interesse não me enganar para que não suspeitem que enunciei teoremas dos quais eu não teria a demonstração completa. Você deve pedir publicamente a Jacobi ou Gauss para que opinem não sobre a veracidade mas sobre a importância destes teoremas." Essa última carta foi publicada na Revue Encyclopédique. Em 1846, Joseph Liouville publicou os trabalhos matemáticos dessa última noite no Journal de Mathématiques Pures et Appliquées, com o título "Obras Matemáticas de Évariste Galois", em 1846. Finalmente, Camille Jordan, no seu "Tratado das Substituições e das Equações Algébricas", de 1870, inclui as teorias de Galois e em 1895, Sophus Lie escreveu "Influência de Galois sobre o Desenvolvimento da Matemática". Agora Galois tinha o seu trabalho definitivamente reconhecido.

sábado, 9 de dezembro de 2023

Cometa Halley no afélio

Hoje, 09 de dezembro de 2023, o cometa Halley atingiu o afélio, ou seja, o ponto de sua trajetória mais distante do Sol. Isso significa que ele começou a retornar em direção a região mais interna do sistema solar. Como é bem conhecido, todos os corpos celestes, planetas, satélites naturais, cometas, movimentam-se em órbitas elípticas, tal como descoberto por Johannes Kepler há vários séculos. O último periélio do cometa Halley, o ponto mais próximo do Sol, pequeno período em torno do qual a cauda aparece, foi no ano de 1986 e o próximo ocorrerá em 2061. É interessante também observar da Figura 1 que a excentricidade da órbita do cometa é bastante grande.


Figure 1: Trajetória do cometa Halley numa órbita entre 1986 e 2061.

Daqui até 2040, o cometa Halley estará além da órbita de Netuno e só no começo de 2060 estará na distância equivalente à órbita de Júpiter e um ano depois atingirá a sua distância mais próxima do Sol, em julho de 2061. Claramente, a velocidade do cometa em sua órbita não é constante, como também já constatado por Kepler quando estabeleceu a sua segunda lei - a lei da áreas - que hoje sabemos ser consequência de uma lei fundamental da natureza, a lei da conservação do momento angular.

Em 1986 ocorreram grandes manifestações da comunidade de astrônomos amadores, no Brasil e em outros países, por causa do aparecimento do cometa Halley. Alguns livros foram produzidos por amadores e profissionais, como aqueles publicados por Nelson Travnik, Rubens de Azevedo e Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, apenas para citar uns poucos. Também fizemos parte de um grupo brasileiro de observadores amadores formado para observar o cometa Halley (Figuras 2 e 3) sob a coordenação do Observatório do Capricórnio, de Campinas-SP, tendo como coordenador geral, Nelson Travnik (*). Particularmente, consegui observar o astro com certa dificuldade, haja vista que ele apresentou-se com uma incrível baixa magnitude. A ideia original era utilizar o nosso telescópio refrator de 60 mm com um adaptador para uma câmera fotográfica reflex e conseguir algumas fotos do cometa, tal como havíamos feito para fotografar o belo eclipse de 06/07/1982. Entretanto, apesar de algumas tentativas, não foi possível conseguir-se boas fotos, apenas uns poucos rabiscos num papel. De qualquer maneira, ficaram alguns bons registros na nossa memória.


Figure 2: Capa do primeiro Boletim dos Observadores, coordenados pelo Observatório do Capricórnio, Campinas.


Figure 3: Lista de observadores cadastrados para observar o Cometa Halley em 1986, coordenados pelo Observatório do Capricórnio de Campinas (nós somos o observador cadastrado com número 039).

* Nelson Travnik nasceu em Petrópolis-RJ e morreu em Campinas-SP, em 07/09/2023. Foi o fundador do observatório Flammarion, em Matias Barbosa-MG, em 1954; do Observatório Municipal de Americana-SP, em 1985; do Observatório Astronômico de Piracicaba-SP, em 1992, além de ter trabalhado desde 1985 no Observatório do Capricórnio, em Campinas.

terça-feira, 3 de outubro de 2023

Prêmio Nobel de Física 2023

Os três ganhadores do Nobel de Física 2023 estão sendo reconhecidos por seus experimentos, que deram à humanidade novas ferramentas para explorar o mundo dos elétrons dentro dos átomos e moléculas. Pierre Agostini, Ferenc Krausz e Anne L’Huillier demonstraram uma maneira de criar pulsos de luz extremamente curtos que podem ser usados ​​para medir os processos rápidos nos quais os elétrons se movem ou mudam de energia.

Eventos em movimento rápido fluem uns para os outros quando percebidos pelos humanos, assim como um filme que consiste em imagens estáticas é percebido como um movimento contínuo. Se quisermos investigar eventos realmente breves, precisaremos de tecnologia especial. No mundo dos elétrons, as mudanças ocorrem em alguns décimos de attosegundo, ou 10⁻¹⁸ segundos. Um attosegundo é tão curto que há tantos em um segundo quantos segundos desde o nascimento do universo. As experiências dos laureados produziram pulsos de luz tão curtos que são medidos em attossegundos, demonstrando assim que esses pulsos podem ser usados ​​para fornecer imagens de processos dentro de átomos e moléculas.

Em 1987, Anne L’Huillier descobriu que muitos overtones diferentes de luz surgiam quando ela transmitia luz laser infravermelha através de um gás nobre. Cada overtone é uma onda de luz com um determinado número de ciclos para cada ciclo da luz laser. Eles são causados ​​​​pela interação da luz laser com os átomos do gás; dá a alguns elétrons energia extra que é então emitida como luz. Anne L’Huillier continuou a explorar este fenômeno, preparando o terreno para avanços subsequentes. Mais adiante, em 2001, Pierre Agostini conseguiu produzir e investigar uma série de pulsos de luz consecutivos, em que cada pulso durou apenas 250 attossegundos. Ao mesmo tempo, Ferenc Krausz trabalhava com outro tipo de experimento, que permitia isolar um único pulso de luz com duração de 650 attossegundos.

As contribuições dos laureados permitiram a investigação de processos que são tão rápidos que antes eram impossíveis de se observar. “Agora podemos abrir a porta para o mundo dos elétrons. A física do attosegundo nos dá a oportunidade de compreender os mecanismos que são governados por elétrons. O próximo passo será utilizá-los”, afirma Eva Olsson, presidente do Comitê do Nobel de Física. De fato, é possível que existam diversas aplicações potenciais em muitas áreas diferentes como na eletrônica e na biomedicina, por exemplo, como em diagnósticos médicos [1].

É interessante destacar que além desses três personagens que ganharam o Prêmio Nobel, um pesquisador da Bell Labs, nos Estados Unidos, também pesquisava o assunto na década de 80 e desempenhou um importante papel. Trata-se de Chuck Shank, que desenvolveu técnicas para se atingir os femtosegundos. Shank trabalhou com o chamado laser com CPM (colliding pulses modelocking) com o qual se conseguiu pulsos de 60 fs. Shank, juntamente com Roger Stolen e Ippen, descobriram que passando o laser em uma fibra óptica, a automodulação de fase criava novas frequências, que vinham atrasadas ou adiantadas no pulso. Essa frequência que varia no tempo é chamada de chirp. O pesquisador Wayne Knox através do uso de uma grade de difração conseguiu cancelar o chirp e como consequência obteve um pulso de 8 fs.

Nesse ponto, entram em cena dois professores brasileiros vinculados ao Instituto de Física da Unicamp. O primeiro foi o Prof. Carlos Henrique de Brito Cruz, que trabalhou no Bell Labs entre 1986 e 1987. Brito incorporou um prisma, além da grade de difração, e obteve um pulso de 6 fs. Esse foi o récorde de pulsos curtos por mais de uma década. Depois, em 1988, chegou ao Bell Labs o Prof. Carlos Lenz César, ali permanecendo até 1990. Nesse período o Prof. Lenz conseguiu o pulso mais curto no infravermelho, cerca de 120 fs, utilizando para isso um laser de Centro de Cor [2]. 

Em 1992 descobriram que o laser de titânio-safira gerava pulsos de femtosegundos e era sintonizável. O Ferenc Krausz, de Viena, então colocou correção de chirp dentro da cavidade do laser de titânio-safira e conseguiu diretamente do laser, sem a necessidade de compressão de pulsos, corrigir o chirp e atingir pulsos de 10 fs. Daí chegou-se ao attomsegundos e o resto faz parte da história.

Notas:

[1] https://www.nobelprize.org/prizes/physics/2023/press-release/

[2] Depoimento do Prof. Carlos Lenz Cesar, Professor Titular no Departamento de Física da Universidade Federal do Ceará.


sábado, 30 de setembro de 2023

Insetos do passado

Uma lagerstätte é uma região na qual os fósseis apresentam um excelente grau de preservação. Muitos estudos melhoraram nossa compreensão do modo de preservação de fósseis do Lagerstätte Crato. O alto grau de preservação dos insetos mineralizados da Formação Crato, localizado na Chapada do Araripe e com idade da ordem de 100 milhões de ano, no sul do Estado do Ceará, é originado da difusão de íons através das carcaças e do envolvimento por bactérias que, por sua vez, criou condições microambientais que levaram à mineralização, principalmente à piritização. Insetos piritizados foram oxidados por intemperismo in situ em óxidos/hidroximinerais mais estáveis durante o Quaternário. O intemperismo intenso pode diminuir ou obscurecer a fidelidade morfológica, e pouca atenção tem sido dada aos processos pós-diagenéticos experimentados por esses fósseis. Com o objetivo de se preencher essa lacuna, tentou-se no trabalho da Ref. [1] - que consistiu numa parceria entre pesquisadores* do Ceará, Piauí e Paraná - determinar o grau de alteração sofrida por insetos que sofreram o processo de piritização na Formação Crato utilizando várias técnicas analíticas utilizadas na física e na ciência de materiais: microscopia eletrônica de varredura,  espectroscopia de raios X por energia dispersiva, espectroscopia de infravermelho por transformada de Fourier e espectroscopia Raman. Os resultados desse trabalho mostram que insetos bem preservados são preferencialmente substituídos por hematita e fósseis mal preservados são substituído por goethita. Além disso, registrou-se três tipos de alteração pós-diagenética: insetos com crescimento excessivo de óxido de ferro; insetos associados a revestimentos pretos, às vezes com a formação de dendritos; e insetos preservados como uma impressão, onde restou apenas o contorno dos seus corpos. Todas essas alterações têm o potencial de distorcer ou manchar a informação paleontológica. Ainda no trabalho da Ref. [1], mediu-se os efeitos das alterações telodiagenéticas em macro e micro escalas. Portanto, trata-se de uma abordagem tafonômica com ampla aplicabilidade onde quer que sejam encontrados depósitos contendo insetos mineralizados.


Referência:
[1] Effects of chemical weathering on the exceptional preservation of mineralized insects from the Crato Formation, Cretaceous of Brazil: implications for late diagenesis of fine-grained Lagerstätten deposits, F.I. Bezerra, J.H. da Silva, E.V.H. Agressot, P.T.C. Freire, B.C. Viana, M. Mendes, Geological Magazine 160, 911 – 926 (2023).
* Esse foi o último trabalho publicado em vida pelo Prof. João Hermínio da Silva, da Universidade Federal do Cariri, grande entusiasta da paleometria (aplicação de técnicas analíticas da física e da química para estudo de fósseis), falecido em 25/09/2023.

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Olhando o céu

É possível realizar interessantes observações astronômicas mesmo com instrumentos com objetivas (no caso de telescópios refratores), ou espelhos (no caso de telescópios refletores) de baixas dimensões. Em tempos de mega telescópios orbitais como o Hobble e o James Webb, pode parecer sem sentido utilizar-se pequenos instrumentos na superfície do nosso planeta para se estudar os corpos celestes. De qualquer maneira, com os pequenos telescópios atuais disponíveis no mercado, no qual se acoplam facilmente sistemas de registros fotográficos, obter belas imagens de planetas e estrelas pode ser uma tarefa relativamente simples e bastante prazerosa. Um exemplo de fotos que podem ser conseguidas é mostrado abaixo. Trata-se da fotografia da superfície lunar obtida com um pequeno telescópio no Observatório Ferrucio Ginelli, da Seara da Ciência, equipamento de divulgação científica da Universidade Federal do Ceará.


Fotografia da superfície lunar, Seara da Ciência - Universidade Federal do Ceará.

Entretanto, mesmo na época em que não havia câmeras fotográficas que registrassem imagens digitais com qualidade, era possível se fazer boas e interessantes observações astronômicas, seja de eclipses (ver, por exemplo, a postagem de 06/07/2022 desse blog), seja de conjunções, seja de fenômenos transientes lunares (TLP), entre outros. Na figura abaixo apresento detalhes de observações que realizei no longínquo ano de 1984 com um telescópio refrator de 60 mm de diâmetro. É possível notar-se detalhes sutis das sombras das crateras e de montanhas que encontravam-se próximas do terminador, ou seja, da região lunar limítrofe entre a noite e o dia. O desenho superior à esquerda representa a região da cratera Moretus tal como observada no dia 02/11/1984 entre 19:20 e 19:40 no tempo local (TL). O desenho inferior à esquerda representa a região de Casatus, tal como foi registrado no dia 03/11/1984 entre 19:30 e 19:40 TL. O desenho do meio representa parte do terminador (colongitude 80 graus) mostrando Grimaldi e Hevelius, como observado em 09/09/1984. O desenho superior direito apresenta uma série de crateras observadas no terminador no dia 06/10/1984 e o desenho inferior à direita apresenta o terminador no dia 07/11/1984, com destaque para muitas elevações na região ao sul de Betinus.
Desenho de crateras e montanhas lunares localizadas no terminador em diversos dias do ano de 1984 (desenhos Tarso Freire, com grafite e tinta guache).

domingo, 8 de janeiro de 2023

O infinito de Hilbert

Na descrição da natureza, vez por outra aparece o conceito de infinito. Algumas culturas já mexiam com esse conceito, enquanto que outras o desconheciam. Na física o conceito de infinito pode aparecer na descrição matemática de alguns fenômenos, como um elétron que se movimenta livremente no espaço, sujeito a um potencial desprezível. Nessa descrição pode ser necessária a utilização de uma distribuição conhecida como função de Dirac δ(x), que possui entre suas propriedades o fato de que δ tende a infinito, quando x tende a zero. Entender o infinito pode ser uma tarefa um pouco complexa, mas eventualmente, divertida.

Imaginemos um hotel que possui infinitos quartos e que em cada quarto apenas um único hóspede pode ocupá-lo. Imaginemos também que o hotel encontra-se completamente ocupado. Então chega um hóspede; a questão é: ele poderá ser alojado nesse hotel de infinitos quartos que já encontram-se completamente ocupados? Esse problema é conhecido como Hotel de Hilbert, criado pelo matemático alemão David Hilbert (1862 - 1943). A resposta ao problema é positiva, é possível sim hospedar o novo hóspede. Basta passar o hóspede do quarto 1 para o quarto 2, o hóspede do quarto 2 para o quarto 3, o hóspede do quarto 3 para o quarto 4, e assim sucessivamente. Em outras palavras, basta apenas passar o hóspede do quarto de número n para o quarto de número n+1. Dessa maneira o quarto 1 ficará vazio e o novo hóspede poderá se hospedar.

Imaginemos agora que chegam 3 novos hóspedes e o hotel, da mesma forma, já está lotado. De maneira similar, é possível hospedar os novos hóspedes. Basta passar o hóspede do quarto 1 para o quarto 4, do quarto 2 para o quarto 5, do quarto 3 para o quarto 6 e, de maneira geral, do quarto n para o quarto n+3. Dessa forma, todos os antigos hóspedes poderão ser alocados e restarão os quartos de números 1, 2 e 3 para os novos hóspedes.

Vamos imaginar uma terceira situação. Próximo ao hotel de Hilbert lotado, existe um segundo hotel de Hilbert, ou seja, com infinitos quartos, que também encontra-se lotado. Chamemos esse segundo hotel de Hilbert de Hotel B. A pergunta que se faz é a seguinte: seria possível transferir todos os infinitos hóspedes do Hotel B para o hotel de Hilbert já lotado? A resposta também é 'sim'. Para isso acontecer pode ser feito o seguinte no hotel de Hilbert original: passa-se o hóspede do quarto 1 para o quarto 2, o hóspede do quarto 2 para o quarto 4, o hóspede do quarto 3 para o quarto 6 e, de uma forma geral, o hóspede do quarto n para o quarto 2n. Dessa forma, todos os antigos hóspedes ficarão ocupando os quartos de números pares e todos os quartos de números ímpares estarão vazios. Uma vez que existem infinitos números ímpares, será possível alocar todos os infinitos novos hóspedes.

Imaginemos uma quarta situação. Existem infinitos hotéis de Hilbert no Universo, todos com infinitos números de quartos e todos eles lotados. Imaginemos ainda que um cataclismo cósmico sem precedentes tenha inviabilizado o funcionamento de todos eles, com exceção de um único hotel de Hilbert, que chamaremos de hotel de Hilbert original (HHO). A questão que fazemos agora é a seguinte: seria possível transferir para quartos desse único hotel de Hilbert disponível, o HHO, todas as infinitas pessoas dos infinitos hotéis de Hilbert sem condições de funcionamento? 

A resposta, mais uma vez, e surpreendentemente, é positiva. Para isso, redistribui-se os hóspedes do HHO da seguinte forma: o hóspede do quarto 1 passa para o quarto 2^1 (dois elevado a um), ou seja, para o quarto 2; o hóspede do quarto 2 passa para o quarto 2^2 (dois elevado a dois), ou seja, para o quarto 4; o hóspede do quarto 3 passa para o quarto 2^3 (dois elevado a três), ou seja, para o quarto 8. De uma forma geral, passa-se o hóspede do quarto n para o quarto 2^n (dois elevado a n) e assim todos os hóspedes originais passam a ocupar quartos que representam potências do número primo 2. A seguir, transfere-se os hóspedes do primeiro hotel de Hilbert danificado e os aloca no HHO da seguinte maneira: o que encontrava-se no quarto 1 coloca-se no quarto 3^1 (três elevado a 1), ou seja, no quarto 3; o hóspede do quarto 2 coloca-se no quarto 3^2 (três elevado a dois), ou seja, no quarto 9; o terceiro no quarto 3^3, ou seja, no quarto 27; o do quarto n para o quarto 3^n e assim sucessivamente. Dessa maneira, todos os hóspedes do primeiro hotel sem condição de uso ficarão hospedados no HHO em quartos que são potência natural de 3. Em seguida transfere-se os hóspedes do segundo hotel de Hilbert danificado e os aloca no HHO da seguinte forma: o hóspede que encontrava-se no quarto 1 danificado coloca-se no quarto 5^1 (cinco elevado a um), ou seja, no quarto 5 do HHO; o hóspede do quarto 2 coloca-se no quarto 5^2, ou seja, no quarto 25; o hóspede do quarto 3 coloca-se no quarto 5^3, ou seja, no quarto 125, e de uma maneira geral, o hóspede do quarto n do segundo hotel de Hilbert danificado se hospedará no quarto 5^n do HHO. 

Quem conhece os números primos já entendeu que os hóspedes dos diversos hotéis estão sendo alocados em quartos do HHO de números que representam potências dos números primos. Assim, os hóspedes do terceiro hotel de Hilbert danificado seriam alocados em quartos que são potências do número 7, os hóspedes do quarto hotel de Hilbert seriam alocados em quartos que são potências de 11; os hóspedes do quinto hotel de Hilbert seriam alocados em quartos que são potências de 13 e assim sucessivamente. Como existem infinitos números primos, os infinitos hóspedes dos infinitos hotéis de Hilbert poderiam ser todos hospedados num único hotel de Hilbert. Ah, sim, um detalhe final: nessa distribuição, o quarto de número 1 ficou desocupado, o que significa que sempre haverá espaço para um hóspede que chegar ocasionalmente de surpresa!

Como conclusão dessa rápida discussão podemos afirmar: podem caber infinitos infinitos dentro do infinito! Mas essa conclusão não é geral. Há situações em que não é possível acomodar certos tipos de infinitos dentro do infinito. Mas isso é assunto para um outro texto.

domingo, 25 de dezembro de 2022

Parabéns, Newton!

Hoje é comemorado os 380 anos de nascimento do matemático inglês Isaac Newton, inventor das leis da mecânica e descobridor da lei da gravitação universal, além de importantes estudos sobre a ótica.

Newton é mundialmente conhecido porque desde quando começamos os estudos de física no ensino fundamental ou no ensino médio nos deparamos com as suas leis do movimento. Em particular, a segunda lei (F = ma) é tão importante para a descrição do movimento no mundo macroscópico que o prêmio Nobel de Física Frank Wilczek a denomina de 'alma da mecânica clássica'. Desde os gregos até chegar ao século XVII, muitos pesquisadores em vários locais da Europa, Ásia e África, tentaram entender o movimento e descrevê-lo de uma forma que pudesse ser entendida por outros estudiosos. Aí podemos citar, numa lista não exaustiva, Estradão, John Philoponus, Ibn Bajja (Avempace), Ibn Rushd (Averroe), Ibn Sina (Avicena), John Buridan, Thomas Bradwardine, Nicholas Oresme, Galileu Galilei, até chegar finalmente a Isaac Newton (por coincidência, Galileu morreu no ano em que este último nasceu).

Em seu livro "Principia Matemática da Filosofia Natural" - considerada uma das obras mais importantes da literatura científica de todos os tempos, encontrando um lugar no mais alto pedestal da ciência ao lado dos "Elementos", de Euclides - Newton estabelece as leis básicas do movimento, que são usadas até hoje. Entre os vários axiomas, definições e deduções encontra-se a definição 4, que afirma que uma força impressa é uma ação exercida num corpo que muda seu estado de repouso ou seu estado de movimento retilíneo uniforme. Entre os axiomas está a segunda lei que afirma que "uma mudança no movimento é proporcional à força motriz impressa e se dá ao longo da linha reta na qual a força é impressa".

Uma discussão importantíssima no Principia é a gravitação. Kepler havia avançado bastante a respeito do entendimento do movimento dos planetas em torno do Sol, em particular que as órbitas eram elípticas. Kepler acreditava que o Sol exercia uma força sobre os planetas, cuja intensidade diminuía com a distância. Entretanto, ele não possuía matemática suficiente para apontar como seria quantitativamente essa força. Posteriormente, Robert Hooke (1605 - 1703), fez a suposição de que a Terra e os demais corpos celestes exerciam uma atração apontando para os seus centros, e que a intensidade dessa força variava de acordo com a distância. Em janeiro de 1684, num encontro em Londres, Robert Hooke, Edmond Halley (1656 - 1742) e Christopher Wren (1632 - 1723) debateram sobre a natureza das órbitas planetárias e sobre a possibilidade delas serem explicadas por um lei do tipo inverso do quadrado. Halley confessara que tentara calcular segundo esse pressuposto e falhara. Hooke afirmara que conseguira, mas nunca mostrou esses cálculos.

Halley levou o problema para Newton, que vivia em Cambridge e esse falou que um corpo atraído por outro por uma lei do inverso do quadrado da distância terá uma órbita elíptica com o corpo central em um dos focos, tal como estabelecido por Képler. Newton foi mais além, afirmando que as ações de todos eles são exercidas sobre os outros. Em dezembro de 1686, Newton publica o Principia, obtendo as leis de Képler, fazendo o teste da Lua e mostrando que a força que a Terra exerce sobre o seu satélite é da mesma natureza com que o Sol exerce sobre os planetas e, finalmente, que a gravidade existe universalmente em todos os corpos, sendo dependente da massa desses corpos e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre seus centros.


Figura: Cópia antiga do livro Principia, de Newton.


Newton teve vários desafetos ao longo de sua vida, o principal deles sendo o colega de Academia, Robert Hooke. Em parte isso se deveu ao fato de que na época, a divulgação das principais ideias se dava principalmente por meio de livros, comunicações orais ou cartas a outros cientistas. Não havia ainda os periódicos científicos como existem hoje em que se pode publicar uma pesquisa e ali ela fica registrada. Como escrito anteriormente, acredita-se que Hooke desconfiasse que a Terra possuía um poder gravitante apontando para o seu centro e que atraía outros corpos com uma força que variava de acordo com a distância. Mas Hooke não possuía matemática suficiente para colocar essas ideias numa lei simples tal como conseguido por Newton, em particular mostrar que a força aponta para o centro dos planetas. O importante é que Newton conseguiu descobrir a lei da gravitação universal e, de fato, ele foi o primeiro a entender que a lei possui um caráter 'universal', ou seja, vale para qualquer par de massas no universo. Parabéns, Newton!