sábado, 11 de abril de 2015

O movimento dos planetas

A Terra realiza um complexo movimento no espaço. Ela gira em torno do Sol a cerca de 30 km/s, o Sol se movimenta em direção ao centro da Via Láctea - a galáxia na qual ele se encontra - com a velocidade de 250 km/s e a nossa galáxia viaja em direção à galáxia de Andrômedra, numa posição geral na constelação de Virgo a cerca de 100 km/s [1]. Além disso, a Terra gira em torno do seu próprio eixo a cada 24 horas e sofre um movimento de nutação por causa da atração gravitacional da Lua, entre outros. 

Assim como a Terra, os outros planetas do Sistema Solar também possuem um complexo movimento no espaço. O principal movimento destes planetas, para um observador na Terra, é o movimento de translação em torno do Sol, já que o movimento da estrela em torno da galáxia, e desta na direção de Virgo, também é realizado pelo nosso planeta.

A compreensão de que os planetas se movimentam em torno do Sol exigiu um grande esforço de diversas gerações de estudiosos, até que finalmente se entendesse o que acreditamos ser o fenômeno correto. Isto porque, realmente, é um problema complicado; os planetas Mercúrio e Vênus só podem ser vistos até uma certa altura acima do horizonte (28 graus para Mercúrio e 47 graus para Vênus) enquanto que Marte, Júpiter e Saturno em algumas épocas realizam um movimento no céu semelhante a um laço em relação às estrelas fixas (ver Figura 1).


Figura 1: Laço formado pelo movimento do planeta Marte (Fonte: Instituto Astronômico e Geofísico da USP).

Para a maioria dos povos antigos, a Terra encontrava-se parada, enquanto que os planetas, a Lua, o Sol e as estrelas giravam em torno dela. Do ponto de vista de um referencial colocado sobre um determinado local do planeta, usando uma linguagem mais moderna, os antigos estavam corretos: todos os astros giram em torno da Terra. Entretanto, esta descrição não ajuda a se descrever leis da natureza mais fundamentais, como a lei da gravitação universal de Newton.

Ainda sobre a questão da imobilidade da Terra, de fato, não há evidências claras de que ela realize algum movimento. Por exemplo, se um objeto fosse jogado para cima, poder-se-ia imaginar, à princípio, que ele deveria cair mais para oeste, ou então, que todas as nuvens deveriam se deslocar na mesma direção a uma grande velocidade. Entretanto, todos os objetos caem em linha reta para baixo, ou em direção ao centro do planeta, se admitimos que o mesmo é esférico. O filósofo grego Aristóteles afirmou em sua obra "Sobre os céus" que existiam três tipos de movimento: (i) o realizado por objeto pesados, que iam em direção ao centro do Universo: (ii) o realizado por objetos leves, como o ar e o fogo, que se afastavam do centro: (iii) o realizado pelos astros, que consistia em movimentos em torno do centro.

Voltemos à questão do movimento dos planetas. Os astrônomos antigos observaram que as estrelas moviam-se uniformemente em círculos, enquanto o movimento do Sol não era uniforme, mas era num círculo. Por outro lado, Marte e Júpiter deslocavam-se um pouco em relação às estrelas a cada noite que passava. O movimento geralmente é para o leste, mas eventualmente, ele se dá para oeste e depois, novamente para leste. Se a posição do planeta for desenhada ao fundo das estrelas, ele parecerá ser um laço, como já mostrado pela Figura 1. Além disso a velocidade do movimento não é uniforme, ou seja, às vezes o planeta acelera e às vezes ele desacelera. Tais fatos eram muito intrigantes e o trabalho dos astrônomos antigos era prever a posição dos planetas e tentar explicar estes movimentos irregulares através de um modelo matemático consistente. Seria possível, por exemplo, explicar o movimento dos planetas por composição de movimentos circulares uniformes?

É possível que a primeira pessoa a expor a ideia de que o movimento complexo dos planetas pudesse ser composto por um conjunto de movimentos circulares uniformes tenha sido Platão [2]. Embora provavelmente Platão tenha sido conduzido a esta ideia por razões estéticas e filosóficas, o fato é que qualquer movimento periódico, hoje se sabe, pode ser decomposto por um determinado número de movimentos circulares uniformes. O aparecimento desta ideia teve um importante papel na construção de um modelo matemático para descrever o movimento dos planetas.

Um dos primeiros modelos foi criado por Eudoxo de Cnidos. Segundo ele, cada planeta encontrava-se sobre a superfície de uma esfera que estaria centrada na Terra e giraria com velocidade constante. Claro, apenas uma esfera com velocidade constante não daria conta do complexo movimento planetário. Assim, a primeira esfera estaria presa por seus polos a uma outra esfera inclinada, que se movimentaria com uma velocidade angular diferente, mas constante. Esta segunda esfera poderia estar presa aos seus polos a um terceira esfera e esta a uma quarta, etc. Eudoxo necessitou de três esferas para descrever o movimento do Sol e da Lua e quatro esferas para cada um dos planetas. Segundo nota da Ref. [2] este sistema deu ótimos resultados para Mercúrio, Júpiter e Saturno, bons resultados para a Lua, médios para o Sol e Vênus e péssimos para Marte.

Um modelo matemático para ser aceito e utilizado por outras pessoas deve no mínimo reproduzir os fenômenos conhecidos com uma certa precisão (na verdade, há outros requisitos que falaremos mais adiante). O modelo de Eudoxo, mesmo com os aperfeiçoamentos posteriores, não descrevia bem o movimento de todos os planetas, além de não ser muito prático. Por conta disso, outros modelos apareceram e se impuseram entre os cientistas antigos.

Uma generalização do modelo de Eudoxo envolvia os conceitos de deferente e epiciclo. O deferente seria a esfera principal que contém o planeta. O centro do deferente coincidiria com o centro da Terra. Centrado nos deferentes estariam os epiciclos, estes sim, que conteriam os planetas. Na Figura 2, a circunferência maior representa o deferente, centrado em T (a Terra), enquanto que o epiciclo está representado pela circunferência menor, centrada no deferente, e que contém o planeta P. Eventualmente, para explicar movimentos mais complicados de determinado planeta, eram necessários epiciclos adicionais que estavam centrados em outros epiciclos. Neste modelo também estava embutida a hipótese de que o deferente e o(s) epiciclo(s) se movimentavam com velocidade constante.

Figura 2: Deferente (circunferência maior) e epiciclo (circunferência menor).


O modelo matemático que descreve o movimento dos planetas que mais tempo durou (cerca de 1300 anos) foi o descrito pelo matemático grego Claudio Ptolomeu no "Almagesto", palavra originária do árabe para significar, "O Maior" [3]. A obra consiste de 13 livros que, além de descrever em detalhes o sistema geocêntrico, também fornece os rudimentos da trigonometria esférica, descreve o movimento da Lua e a duração dos meses, o astrolábio, descreve os eclipses do Sol e da Lua, fornecendo uma tabela destes acontecimentos, fornece ainda uma tabela de conjunções e aposições dos planetas e um catálogo de 1022 estrelas. Segundo o Prof. Roberto de Andrade Martins [2]: "Quem nunca sequer folheou o Almagesto de Ptolomeu dificilmente poderá imaginar o esforço titânico que encerra. Enorme número de dados cuidadosamente selecionados; um rigoroso tratamento matemático (com o uso de trigonometria esférica); uma genial intuição para vislumbrar arranjos geométricos simples capazes de descrever os fenômenos; o uso desses arranjos para fazer previsões astronômicas. Tudo isso compreendia centenas de páginas de cálculos, números, argumentos." Já o físico Steven Weinberg afirma que a teoria descrita pelo Almagesto pode ser considerada uma teoria moderna quanto aos seus métodos: modelos matemáticos são propostos contendo vários parâmetros numéricos livres que são encontrados a partir de vínculos entre as previsões teóricas do modelo com dados observacionais [4]. Podemos dizer, sem medo de pecar pelo exagero, que o Almagesto é uma das mais importantes obras científicas da história.



Figura 3: Uma página do Almagesto numa tradução árabe.

O trabalho de Ptolomeu representou uma grande generalização dos modelos planetários anteriores. Ele era baseado nos seguintes dispositivos matemáticos - epiciclo, deferente, excêntrico e equante. Uma sofisticação do modelo veio com a introdução do conceito de excêntrico. O excêntrico seria um deferente cujo centro não se encontrava coincidente com a Terra. Para o Sol, por exemplo, Ptolomeu calculou que a distância entre o centro do deferente e a Terra era 1/24 do raio terrestre. Entretanto, mesmo com esta ideia adicional, o movimento dos planetas não podia ser perfeitamente descrito em certas situações. Uma questão que surgiu foi em relação a qual ponto o deferente girava com velocidade angular constante. Seria em relação à Terra, ao seu centro ou a um terceiro ponto? Ptolomeu demonstrou que seria mais conveniente que o deferente girasse com velocidade angular constante em relação a um terceiro ponto chamado de equante. O equante seria um ponto simétrico à Terra em torno do ponto do círculo que caracterizava o centro do deferente [4]. A Figura 4 apresenta uma representação do equante, do centro do excêntrico e mais o deferente e o epiciclo. Para construir estas ideias Ptolomeu se baseou em dados experimentais de centenas de anos, envolvendo entre outros dados de astrônomos caldeus e de astrônomos gregos, incluindo dados de muita qualidade obtidos por Hiparco.
Figura 4: Representação do excêntrico (deferente centrado fora da Terra) e do equante.


O modelo de Ptolomeu sobreviveu por treze séculos. Era um modelo engenhoso, matematicamente rigoroso e que reproduzia, com boa aproximação, o movimento dos planetas. Como já falado, um dos fatores que levaram a esta boa concordância foi o fato de que ele estava baseado em bons dados experimentais.

No século XVI Nicolau Copérnico reinterpretou os dados correspondentes a observações realizadas durante centenas de anos - que eram do conhecimento de Ptolomeu - e dados adicionais dos séculos posteriores, colocando a Terra e os outros planetas se movimentando em torno do Sol [5]. O trabalho de Copérnico pode ser considerado revolucionário pelo fato de que, à época, não havia boas evidências experimentais de que o Sol estivesse no centro do sistema planetário. No dizer do Prof. Roberto Andrade [2]: "Não se pense que Copérnico substituiu por sua teoria científica uma proposta idiota de um astrônomo obtuso. A proposta de Ptolomeu é ciência, do mais alto nível. Os astrônomos que o seguiram não eram também idiotas dobrados sob o jugo da autoridade e do passado. Eram pessoas que adotavam a proposta geocêntrica de Ptolomeu por perceberem seu enorme valor e por não conhecerem uma alternativa que estivesse a seus pés." 

Para expor suas ideias Copérnico escreveu dois livros. O primeiro, Commentariolus, consistia num pequeno texto não matemático, no qual ele apresentava um sistema em que os planetas giravam em torno do Sol. O segundo, De revolutionibus orbium coelestium (Da revolução das esferas celestes), publicado no ano de sua morte, apresentava o modelo calcado em rigorosos esquemas matemáticos. As principais ideias deste modelo eram que os movimentos dos corpos celestes são circulares e uniformes e que o Sol encontra-se parado. Embora revolucionário, o modelo possuía facetas que lembravam a teoria geocêntrica como deferentes, epiciclos e excêntricos. Como aponta a Ref. [2], a diferença em relação à teoria de Ptolomeu quanto aos aspectos técnicos era que não fazia referência ao equante.
   
     
     

Figura 5: Reprodução de página da obra de Nicolau Copérnico, mostrando o detalhe das órbitas (os orbes) dos planetas em torno do Sol.

Algumas das hipóteses usadas por Copérnico para descrever o seu modelo são as seguintes: "(i) o centro da Terra não é o centro do mundo, mas apenas o da gravidade e do orbe lunar; (ii) todos os orbes giram em torno do Sol, como se ele estivesse no meio de todos; portanto, o centro do mundo está perto do Sol; (iii) qualquer movimento aparente do Sol não é causado por ele mas pela Terra e pelo nosso orbe, com o qual giramos em torno do Sol como qualquer outro planeta."

No Commentariolus, Copérnico já apresenta as principais ideias que serão melhor discutidas no De revolutionibus, entre elas a utilização apenas de movimentos circulares uniformes em torno dos seus centros. Além disso ele tenta explicar os movimentos dos corpos celestes com um número de círculos menor do que o apresentado por Ptolomeu: enquanto este último utilizou 40 círculos, Copérnico utilizou no Commentariolus apenas 34 círculos [6]. Com seu modelo Copérnico também conseguiu explicar a pouca variação do tamanho da Lua durante uma lunação, além de descrever com números semelhantes aqueles encontrados por Ptolomeu as distâncias dos planetas ao Sol. O laço dado pelos planetas Marte, Júpiter e Saturno, adicionalmente, possuíam uma explicação mais direta do que os complicados epiciclos e deferentes de Ptolomeu. Tratava-se de um efeito visual pelo fato da velocidade angular da Terra ser maior do que a velocidade angular dos outros três planetas.

Figura 6: Representação esquemática do movimento retrógrado de Marte. Pelo fato da Terra possuir uma velocidade angular maior, em alguns momentos o planeta vermelho parecerá caminhar para trás (fonte Google imagens).

As evidências experimentais que faltavam para confirmar a veracidade do modelo heliocêntrico só seriam conseguidas algumas décadas após a morte de Copérnico, com Galileu, que apontou o telescópio para Vênus e descobriu que o planeta apresentava fases como a Lua, compatível com um corpo que gira em torno do Sol. O porquê dos planetas girarem em torno do Sol foi uma questão que seria respondida algumas décadas após Galileu, com o trabalho de Isaac Newton. As contribuições destes dois gigantes serão discutidas em outras postagens.


Figura 7: Selo em homenagem a Nicolau Copérnico (coleção particular).


Referências e notas:
[1] O Big Bang: A Origem do Universo. Joseph Silk, 2a. Ed., UnB: Brasília, 1988.
[2] Introdução geral ao Commentariolus de Nicolau Copérnico. R.A. Martins, in Commentariolus, N. Copérnico, 2a. ed., Livraria da Física: São Paulo, 2003.
[3] Embora o Almagesto - contendo modelos e matemática sofisticados - seja a obra mais conhecida de Claudio Ptolomeu, uma segunda obra do mesmo astrônomo chegou até nós, A hipótese dos planetas. Trata-se, esta última, de um livro que também contém importantes argumentos, embora sem a utilização de matemática, sobre as hipóteses utilizadas por Ptolomeu na construção do seu modelo de mundo.
[4] Segundo Steven Weinberg [To explain the world: the discovery of modern science] não se sabe quem inventou os conceitos de epiciclo e excêntrico; Apolônio de Perga e Hiparco de Nicéia já os conheciam. Já o conceito de equante foi inventado por Ptolomeu.
[5] Observe-se que no século III a.C. Aristarco de Samos já havia proposto uma teoria heliocêntrica. Entretanto, a obra em que Aristarco desenvolve esta ideia se perdeu no tempo, de tal modo que não é possível saber se ela continha algum embasamento matemático mais rigoroso. De qualquer forma, talvez por falta de evidências observacionais, a ideia não foi levada adiante pelos astrônomos que o suscederam. Também é interessante destacar que para Heraclides do Ponto - filósofo que viveu no século IV antes de Cristo - Mercúrio e Vênus deveriam girar em torno do Sol, pois nunca são vistos no céu longe dele. Como nos diz Weinberg no seu livro "To explain the world": "As far as the inner planets are concerned, the only difference between Heraclides and Copernicus is point of view - either based on the Earth or based on the Sun".
[6] Na verdade, em sua obra máxima, Da revolução das esferas celestes, Copérnico foi obrigado a utilizar 48 círculos, o que representou na verdade uma complicação em relação ao sistema de Ptolomeu.