segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Hidrogênio metálico


O hidrogênio é o elemento químico mais abundante do universo, sendo encontrado principalmente no interior de estrelas. No Sol, por exemplo, o hidrogênio responde por mais de 80 % de sua massa. No interior de grandes planetas, como Júpiter, reinam altas temperaturas e altas pressões, condições termodinâmicas que sugerem que o hidrogênio possa se encontrar em fases bastante diferentes daquelas nas quais ele é conhecido no nosso planeta.

Um problema que vinha sendo atacado por várias décadas diz respeito à observação de hidrogênio metálico. Wigner e Huntington fizeram a previsão de que sob altas pressões o hidrogênio seria metálico. Uma maneira de se conseguir essa propriedade seria a altas pressões e altas temperaturas. Nesse caso, o hidrogênio sofre uma transição de fase para uma fase conhecida como hidrogênio metálico atômico líquido, recentemente reportado na literatura [1]. A outra possibilidade, que também foi recentemente descoberta experimentalmente, é a chamada fase de hidrogênio metálico sólido [2].

Figura 1: Diagrama de fase do hidrogênio mostrando duas formas de se conseguir o hidrogênio metálico; (i) hidrogênio metálico atômico líquido (pathway II) e (ii) hidrogênio metálico sólido (pathway I) {Ref. [2]}.

No que diz respeito à fase do hidrogênio metálico sólido – que pode ser atingido pelo caminho I da Figura 1 – uma fase inicial de alta pressão é representada pela fase I. Aumentando-se a pressão, o hidrogênio passa para uma fase II, que apresenta uma estrutura hexagonal altamente compacta (hexagonal close packed, hcp). A fase III é uma fase que se distingue da fase II por apresentar diferentes orientações das moléculas de H2. Continuando a compressão o hidrogênio passa para uma fase na qual ele aparece opaco [nesse caso ele seria um semicondutor e a opacidade seria exatamente devida ao fato de que o gap de energia coincidir com a energia da luz visível] e, finalmente, em 495 GPa ele vira um metal.

Para se atingir as altas pressões necessárias para se observar o hidrogênio metálico atômico na Ref. [2], utilizou-se uma célula de pressão a extremos de diamantes. Uma série de dificuldades, entretanto, teve que ser vencida. Em primeiro lugar, as tensões sobre os diamantes são muito grandes e o hidrogênio sob altas pressões e temperatura ambiente fragiliza as gemas e produz rachaduras. Para evitar esse problema os diamantes devem ser mantidos ou à temperatura do nitrogênio líquido ou à temperatura do hélio líquido. Além disso, antes do uso, os diamantes foram aquecidos para remover tensões residuais. Adicionalmente, com o intuito de evitar a difusão do hidrogênio pelo diamante, foi colocado um fino filme de alumina com 50 nm de espessura sobre os diamantes, utilizando-se para isso a técnica de deposição de camadas atômicas (atomic layer deposition). Outro problema que pode ocorrer com os diamantes submetidos a altas pressões é a ocorrência de falhas devido ao calor do laser utilizado na técnica de espectroscopia Raman ou à grafitização da superfície das gemas, se a intensidade da radiação for relativamente alta. Assim, para evitar estes últimos problemas no experimento apresentado na Ref. [2] foi utilizada radiação infravermelha de baixa potência. A determinação da pressão no interior da gaxeta de rênio onde encontrava-se o hidrogênio sobre investigação pode ser considerado um desafio à parte. Ao longo do intervalo entre 88 e 500 GPa foram utilizadas três diferentes técnicas, sendo que de uma forma direta, através da luminescência do rubi, só é possível realizar-se medidas até 150 GPa.

A Figura 2 apresenta três momentos das medidas de altas pressões, conforme reportado por Dias e Silvera na Ref. [2]. Em 205 GPa, o hidrogênio molecular apresenta-se como uma substância transparente. Em 415 GPa, o hidrogênio molecular, numa outra fase, aparece como uma substância opaca. Finalmente, em P = 495 GPa, o hidrogênio apresenta-se na fase metálica sólida, refletindo a luz que é lançada pela parte superior da célula de pressão; essa é a primeira evidência em laboratório de que o hidrogênio sob altas pressões é um sólido metálico. Assim, 81 anos após a previsão teórica de Wigner e Huntington ter sido feita [3], finalmente o hidrogênio metálico foi encontrado. 

Figura 2: Fotografias do hidrogênio dentro de uma célula de pressão a extremos de diamante em diferentes estágios de compressão como registrado por R. Dias e I.F. Silveira. (a) Até pressões de 335 GPa o hidrogênio apresenta-se transparente; (b) em P = 415 GPa, a amostra apresenta-se escura; (c) em P = 495 GPa, a amostra não deixa luz ser transmitida por ela, mas apresenta-se brilhante por luz refletida [2].


Controvérsia:
 
Do ponto de vista experimental, o experimento realizado por Dias e Silvera é de grande complexidade. Isso se deve à grande difusividade do hidrogênio na gaxeta metálica e nos defeitos do diamante, à sua alta reatividade química com os materiais ao seu redor e à sua forte compressibilidade [4]. Por conta disso, hoje, em março de 2017, muitos cientistas não acreditam que o hidrogênio metálico tenha sido realmente conseguido. Por exemplo, Paul Loubeyre, do Atomic energy Research Centre for Military Applications, na França, não acredita que eles tenham atingido a pressão de 495 GPa [4]. Segundo ele, as células de pressão, tal como os diamantes são desenhados, não conseguem ultrapassar 350 GPa: "Para se atingir pressão acima de 400 GPa um novo tipo de formato do diamante é necessário. além disso, a análise da refletividade está incorreta" [5]. Mikhail Eremets, do Max Planck Institute for Chemistry in Mainz, na Alemanha, também acredita que há erros nos cálculos acerca da refletividade, característica que se constitui no principal indício da metalização do hidrogênio. 

Além disso, Eremets e Drozdov (ED) acreditam que a pressão foi superestimada [6, 7]. Eles questionam o método de medida de pressão dos autores Dias-Silvera (DS). De fato, DS utilizaram os giros do parafuso da célula de pressão como o método indireto para medida deste parâmetro termodinâmico para P > 300 GPa. Mas como muito bem notado por ED, a pressão que está sendo aplicada numa amostra depende da geometria particular dos diamantes, da gaxeta, etc. A cada experimento, determinados valores de rotação do parafuso corresponderão a distintos valores de pressão. Para ilustrar esse ponto, ED recuperam os dados publicados há dez anos por Akahama [8], que mostram que com diferentes dimensões do culet do diamante, obtêm-se diferentes pressões com um mesmo avanço do pistão (Figura 3).
 Figura 3: Dependência da pressão (GPa) com o avanço do pistão (micra) para diferentes diâmetros do culet do diamante [6, 8]. Observe-se que com um avanço do pistão de 100 micra, por exemplo, dependendo se o culet tiver 25 ou 50 micra, a pressão diferirá de até 100 GPa.



ED [6] lembram ainda que a escala de pressão do diamante (isto é, da frequência de vibração dos grupos C - C) é estabelecida pela equação de estado dos metais até 400 GPa. Uma dependência linear do desvio Raman é válido apenas até cerca de 300 GPa e para pressões maiores uma escala não linear deverá ser utilizada. ED lembram que tal fato foi confirmado medindo-se a equação de estado do ouro até 400 GPa. Entretanto, no trabalho de DS, os autores utilizam uma escala linear, fornecendo um valor máximo de 495 GPa; se a escala utilizada tivesse sido a não-linear, eles teriam atingido a improvável pressão de 633 GPa! Além disso, ED lembram que é surpreendente DS atingirem 495 GPa com um diamante de 30 a 35 micrômetros de bigorna de chanfro simples, uma vez que o recorde é 450 GPa com bigornas do mesmo tipo, mas medindo de 15 a 20 micrômetros. Mesmo o argumento de DS que eles realizaram um etching sobre a superfície do diamante para remover os defeitos ali existentes e propiciar o alcance de uma maior pressão não justificaria a pressão supostamente atingida, haja vista que com esta metodologia não é possível ultrapassar 400 GPa de pressão.

ED também acreditam, baseado na análise cuidadosa do espectro Raman do diamante apresentada por DS, que a pressão no experimento desses últimos autores era da ordem de 380 GPa. Contudo, ED anteriormente haviam observado uma transição a uma nova fase condutora de baixa temperatura, possivelmente metálica, conforme mostraram certas evidências como a queda da resistência e o desaparecimento do sinal Raman em 360 - 380 GPa. O experimento de ED foi repetido três vezes em 2016, mas mesmo assim eles acreditam que seriam necessários mais experimentos. Além disso, ED afirmam que as reflexões, separadamente, podem ser evidência apenas do hidrogênio indo para a fase III, que não é metálica, pois o sinal Raman ainda está presente. Assim, ED acreditam que este fato seria outra evidência que DS estariam realmente em pressões abaixo de 400 GPa, tal qual os seus antigos experimentos. 

Nessa mesma direção, Loubeyre, Occelli e Dumas (LOD) [4] apontam que é surpreendente que no trabalho de DS o hidrogênio se torne negro em 400 GPa, quando o trabalho do grupo de LOD mostrou 15 anos antes que este fenômeno acontece em 320 GPa, portanto 80 GPa abaixo do que acreditam os autores da Ref. [2]. Isso seria outro indicativo da superestimação do valor da pressão no experimento de Dias - Silvera. De fato, é mais ou menos consenso entre vários grupos [utilizando diversos tipos de calibração] que o hidrogênio negro ocorra para pressões da ordem de 300 GPa na temperatura de 80 K. É de se notar ainda que se for utilizado uma fórmula empírica de Ruoff, para o valor do diâmetro do culet do diamante utilizado, a pressão máxima atingida por Dias - Silvera teria sido de aproximadamente 340 GPa, e jamais 495 GPa!

No que diz respeito às medidas de reflexão, ED também levantam algumas dúvidas. Em primeiro lugar, a alumina que foi colocada sobre a superfície do diamante pode refletir igual ao alegado hidrogênio metálico. Desta forma, ED sugerem que outro tipo de protetor seja usado sobre o diamante. O ideal, segundo ED, teria sido a realização de medidas de condutividade. Contudo, devido à ausência destas medidas mais definitivas, DS mediram a refletividade acoplada ao uso da teoria de Drude dos elétrons livres. Entretanto, este método exigiria medida de refletividade em uma grande região espectral, e não em apenas quatro pontos do espectro visível. ED questionam onde é a superfície de referência, como a luz incidente atingiu a célula de pressão, se os diamantes eram perfeitamente planos e não na forma de um espelho convexo o que induziria um brilho adicional, etc [6]. Finalmente, outro detalhe relatado pela Ref. [6] é a lembrança de que os diamantes absorvem luz, mas o gap de energia da banda diminui bastante em virtude da aplicação da pressão uniaxial. Isso significa que uma correção deveria ter sido feita, mas embora DS a façam no seu trabalho, o procedimento é indevido uma vez que eles usam os dados de um aparato relativo a um outro experimento.

Referências:
[1] M. Zaghoo, A. Salamat, I.F. Silvera, A first-order phase transition to metallic hydrogen. Phys. Rev. B 93, 155128 (2016).
[2] R. Dias, I.F. Silvera, Observation of Wigner-Huntington transition to solid metallic hydrogen, arXiv:1610.01634 [cond-mat.mtrl-sci]; Science 355, 715-718 (2017).
[3] E. Wigner, H. B. Huntington, On the Possibility of a Metallic Modification of Hydrogen. J. Chem. Phys. 3, 764-770 (1935).
[4] P. Loubeyre, F. Occelli, P. Dumas, 2017, arxiv: 1702.07192.
[5] P. Ball, Controversial metallic hydrogen calim under new scrutiny, 10/03/2017 https://www.chemistryworld.com/news/controversial-metallic-hydrogen-claim-under-new-scrutiny-/2500534.article
[6] M.I. Eremets, A.P. Drozdov, 2017, arxiv: 1702.05125.
[7] A.F. Goncharov, V. Struzhkin, 2017, arxiv: 1702.04246.
[8] Y. Akahama, 2007. Diamond anvil Raman gauge in multimegabar range. Workshop on Pressure scale. Jan. 26-28 2007 Geophysical Lab, CIW.


terça-feira, 11 de outubro de 2016

Fósseis: inferindo o passado da Terra


A fossilização é um processo no qual animais e plantas ficam preservados na forma de minerais após milhões de anos. De uma forma geral, após a morte, o organismo fica sujeito à atuação de uma grande variedade de processos microbiológicos, culminando com a sua decomposição em um curto intervalo de tempo. Entretanto, em condições especiais, como aquelas encontrados em ambientes com ausência de fungos e bactérias, podem ocorrer outros processos nos quais o acúmulo gradual de sedimentos induz a substituição de substâncias orgânicas do resto do ser vivo por minerais diversos. Isso permite que a forma do corpo seja preservada.


Os fósseis são encontrados em diversas partes do mundo. O Brasil, em particular, possui uma das mais importantes fontes de fósseis do Período Cretáceo, ou seja, o período geológico que gira em torno de 100 milhões de anos atrás. Esses fósseis são encontrados na Chapada do Araripe, uma região localizada ao sul do Ceará, compreendendo também áreas dos estados de Pernambuco e do Piauí (Figura 1). Nos últimos 10 anos uma série de estudos aplicando técnicas análise de materiais foi aplicada aos fósseis da Chapada do Araripe, no Cariri, incluindo difração de raios-X, espectroscopia infravermelho, espectroscopia Raman e fluorescência de raios-X. Outras técnicas físicas também têm sido utilizadas, como a tomografia de raios-X, que será resumidamente discutida mais abaixo (embora ainda não tenha sido utilizada na análise de fósseis do Cariri).



Figura 1: Perfil da Chapada do Araripe, mostrando todas as formações geológicas constitutivas [1].


Difração de raios-X:

A difração de raios-X é uma poderosa técnica experimental para se determinar o tipo de material que está sendo investigado. Consiste no envio de uma radiação (luz) com comprimento de onda tipicamente da ordem de 0,01 a 0,1 nm sobre uma amostra e, após a interação desta radiação com a matéria, o espalhamento da mesma em várias direções. A radiação espalhada contém informação a respeito dos planos cristalinos do material. Desta forma, indiretamente, pode-se determinar qual o material que está produzindo o espalhamento da radiação (o fenômeno é denominado de ‘difração’ porque é como se a radiação fosse difratada pelos planos cristalinos). Esta técnica possui aplicação em várias áreas da ciência, incluindo aí a paleontologia.


Para exemplificar a aplicação do uso da difração de raios-X no estudo de fósseis, consideremos a análise por difração de raios-X do peixe Rhacolepis bucalis, cujas fotos são apresentadas na Figura 2. A Figura 3 apresenta uma fotografia do nódulo do qual o fóssil foi retirado, bem como o padrão de difração das escamas extraídas do peixe fossilizado, que aparecem como picos. O padrão de difração do CaCO3 (carbonato de cálcio) está representado pelas barras verticais retiradas de um banco de dados de difratômetros de raios-X. Essa comparação permite mostrar que existe uma boa concordância entre o resultado experimental aqui apresentado e o padrão do banco de dados, sugerindo que o carbonato de cálcio é a fase cristalina predominante na escama. Entretanto, existe uma outra fase que está representada pela setas que estão marcando picos de baixa intensidades. Tal fase que pode ser considerada secundária, corresponde - novamente fazendo-se a comparação com um banco de dados - a uma fase cristalina de fosfato de cálcio hidróxido, Ca5(PO)4.(OH). Assim, pode-se considerar que as escamas do peixe fossilizado são predominantemente formadas por carbonato de cálcio e fosfato de cálcio hidróxido, indicando que o processo de fossilização ocorreu principalmente por calcificação. Isso indica que o ambiente encontrado há cerca de 100 milhões de anos tinha caráter alcalino, o que propiciou a precipitação de carbonato de cálcio em torno das estruturas orgânicas. 
  



Figura 2: Fotos do peixe Rhacolepis bucalis oriundo da Formação Romualdo, da Chapada do Araripe, no estado do Ceará.


Figura 3: Nódulo do qual foi extraído o fóssil do peixe Rhacolepis bucalis e difratograma de raios-X das escamas [8].

Um outro exemplo de estudo no qual a difração de raios-X foi importante para determinar os constituintes dos fósseis diz respeito a peixes da Formação Ipubi, também localizada na Chapada do Araripe. Os fósseis correspondiam às espécies de Cladocylcus gardneri e Vinctifer comptoni. O estudo investigou tanto os fósseis quanto as matrizes nos quais eles foram encontrados. Dos dados de difração de raios-X observou-se no fóssil do Cladocylcus gardneri a presença de fases da calcita e da hidroxiapatita, além de pequenos traços de pirita e de quartzo. Na matriz que continha o fóssil foi observada a presença de calcita, quartzo e pirita. Em relação ao fóssil de Vinctifer comptoni observou-se predominantemente uma fase de hidroxiapatita, entquanto que na matriz foi detectada a presença de gipsum, calcita, pirita e quartzo. É interessante notar a diferença de fases dominantes das duas matrizes, o que sugere que as fossilizações ocorreram em diferentes períodos climáticos. A coloração mais clara da matriz do Vinctifer comptoni sugere, entre outras possibilidades, a ocorrência de períodos de seca durante o Cretáceo, o que resultou na evaporação de água causando a mortalidade de peixes devido ao aumento da salinidade. Assim, uma possível explicação para a morte dos peixes na Formação Ipubi seria essa mudança de salinidade.

Figura 4: Imagens dos fósseis de Cladocyclus gardneri e Vinctifer comptoni [11].

Figura 5: Padrões de difração de raios-X dos fósseis e matrizes dos peixes Cladocyclus gardneri e Vinctifer comptoni [11].


Espectroscopia Raman: 

A espectroscopia Raman é uma técnica espectroscópica na qual a luz monocromática de um laser interage com a matéria e a luz espalhada devido à interação luz - matéria contém informação sobre as propriedades vibracionais do material. Essa luz espalhada pode ser registrada e analisada por intermédio de um espectrômetro. A grande vantagem da espectroscopia Raman, além de ser uma técnica não destrutiva, é o fato de que cada material, cada substância, possui um espectro Raman característico, funcionando como uma impressão digital. Isso é muito importante para pessoas que trabalham com temas relacionados à Geologia, História, Ciências Forenses, Arqueologia e Paleontologia (a espectroscopia Raman também desempenha um papel muito importante na Física e na Química, mas esse ponto não será discutido aqui). No que diz respeito à arqueologia, por exemplo, é possível investigar substâncias diversas como cerâmicas [rochas artificiais obtidas da queima de diversos materiais], esmaltes [substratos contendo uma grande porcentagem de fase vítrea], vidros, tintas, resinas, pergaminhos, etc. No que diz respeito à geologia, os minerais que compõem as rochas podem ser inferidos. Quando a substância é pura, é fácil fazer a identificação comparando o seu espectro com um banco de dados. Entretanto, o problema pode ficar mais complexo: embora existam cerca de 4000 minerais, a quantidade de soluções sólidas, ou o número de composições possíveis é, teoricamente, infinito. Por exemplo, o grupo da granada com estrutura Ca3Al2Si3O12 pode ter átomos substituídos por Fe2+, Fe3+, Na2+, Mn2+, Mn3+, P5+, Ti4+, Sn4+, V3+, Zn2+, entre outros, fornecendo um imenso número de possibilidades.  

Apesar das dificuldades, é possível realizar uma boa análise dos minerais. Os fósseis, como consequência, são potenciais materiais que podem ser investigados pela técnica de espectroscopia Raman. A técnica pode ser utilizada de uma forma analítica ou então como metodologia auxiliar a outras técnicas experimentais como a difração de raios-X. No caso dos fósseis, ao invés de se utilizar um sistema de análise dispersivo separando a luz espalhada pela amostra em análise através de uma grade de difração, usa-se um sistema de espectroscopia por transformada de Fourier com um laser emitindo no infravermelho (geralmente a linha 1064 nm de um laser de Nd:YAG) e um detector de Ge de alta sensibilidade refrigerado com nitrogênio líquido. O laser emitindo no infravermelho previne que moléculas ou átomos sejam excitados para seus mais baixos estados eletrônicos e produzam, devido à relaxação para os estados fundamentais, uma banda larga de fluorescência. Se tal banda de fluorescência é produzida, o sinal devido ao espalhamento Raman fica bastante difícil de ser observado, ou mesmo desaparece completamente.

Para exemplificar esta técnica, vamos considerar a análise de dois peixes fósseis de uma espécie extinta, o celacanto, recolhidos das formações Romualdo e Brejo Santo, ambas da Chapa do Araripe [7]. A Figura 6 apresenta os espectros Raman dos fósseis e matrizes das duas formações geológicas especificadas acima. No caso da Formação Romualdo observa-se que os espectros do fóssil e da matriz são muito similares. A diferença entre os dois espectros basicamente se resume a uma banda em 969 cm-1 ('centímetro a menos um' é uma unidade de energia usada pelos espectroscopistas) que foi identificada como originária de uma vibração de estiramento do grupo PO4 pertencente à substância hidroxiapatita. Nos espectros Raman também aparecem picos em 157, 287, 716 e 1091 cm-1. Estes picos são característicos da calcita; além disso, também é possível observar-se uma pequena banda em 1437 cm-1 que pode ser associada a uma vibração do grupo CO3. Observe-se que a calcita é um composto que aparece de forma majoritária na matriz do fóssil de celacanto da Formação Romualdo. Assim, o resultado de espectroscopia Raman sugere que o processo de fossilização desse fóssil foi caracterizado pela substituição parcial do ambiente reinante no Período Cretáceo, sendo a calcita o principal composto a impregnar o fóssil, permitindo a sua preservação.


Na matriz do celacanto retirado da Formação Brejo Santo foram observados picos no espectro Raman em 157, 468 e 1091 cm-1. O primeiro e o último estão associados à calcita, mas o observado em 468 cm-1 não. Na verdade, fazendo-se uma busca nos picos mais intensos de minerais mais prováveis de serem encontrados no solo da referida formação geológica, descobre-se que este pico deve estar associado com uma vibração da estrutura Si – O – Si. Contando também com a análise de difração de raios-X (que não é discutida neste texto) descobre-se que a vibração é oriunda de átomos do quartzo. No que diz respeito ao espectro do fóssil do celacanto da Formação Brejo Santo propriamente dito, percebe-se que a sua qualidade não é boa, apresentando um intenso espalhamento. Também é possível observar um pico em 969 cm-1 que está associado à hidroxiapatita; consequentemente, percebe-se que esta substância deve ser a principal constituinte do fóssil encontrado na Formação Brejo Santo. 

Figura 6: Espectros Raman de fósseis de celacanto do Período Cretáceo oriundos de duas formações geológicas da Chapada do Araripe [7].

Outro interessante exemplo do uso da técnica de espectroscopia Raman no estudo de fósseis é o da investigação dos constituintes de um fóssil Brachyphyllum castilhoi proveniente da Formação Ipubi da Chapada do Araripe. A análise realizada através de espectroscopia infravermelha mostrou a existência de uma vibração devido aos átomos Fe – S. Isso sugere fortemente a presença de pirita, FeS2. Na Figura 5 é mostrada a presença de bandas localizadas em 342 cm-1 e em 377 cm-1 que são exatamente devidas à vibração do tipo S – S. Ora, se pirita está presente numa determinada amostra significa é esperado que vibração do tipo Fe – S apareça nos espectros infravermelho e vibrações do tipo S – S apareçam no espectro Raman. Assim, com esse resultado descobriu-se que o fóssil de Brachyphyllum castilhoi apresenta uma quantidade razoável de pirita. Além disso, na parte do fóssil representada pela letra C também é possível notar-se a presença de outras substâncias (que não serão discutidas aqui) por causa da presença de outros picos. É interessante lembrar também que a pirita é formada naturalmente, sob condições marinhas, em ambientes com pH entre 6 e 9, e estando o ferro disponibilizado na forma de óxido. Todos esses resultados, resumidamente, indicam que a piritização também parece ter desempenhado um importante papel na fossilização de espécimes da Bacia do Araripe, ou pelo menos, na Formação Ipubi. Além disso, a descoberta sugere um antigo ambiente com características marinhas, próprio de águas relativamente profundas.
Figura 7: Espectros Raman de várias partes de um fóssil de Brachiphyllum castilhoi tendo em destaque a região onde aparecem bandas associadas à vibrações da pirita [1].

Espectroscopia no infravermelho:

Também é possível realizar medidas de espectroscopia de infravermelho (IR). Entre vários métodos pode-se preparar as amostras produzindo pelotas de amostras e prensadas com KBr. Esse método tem a desvantagem de necessitar destruir a amostra (no caso, o fóssil) ou pelo menos subtrair um pequno pedaço.  A amostra é colocada e dispersa numa matriz de KBr, que é transparente ao IR. Todo esse material é compactado  para análise de absorção de transmissão no IR. Embora a compactação da amostra da amostra com KBr seja bastante prático para analisar pequenas quantidades de amostra, alguns problemas podem surgir, como aglomeração de partículas, absorção de água e efeitos de tamanho de partícula, entre outros. Esse problemas podem fazer com que a análise não seja quantitativamente confiável, como apontado por diversos autores. Obviamente, há várias maneiras de se minimizar esses inconvenientes, como a redução do tamanho das partículas para dimensões inferiores a 2 microns, a minimização da absorção de água pelo KBr aquecendo-o a temperaturas superiores a 110 graus Celsius e o cuidado na homogeneização da amostra e do KBr. Pode-se preferir também, para evitar tais dificuldades, utilizar-se métodos de reflectância, incluindo a espectroscopia por transformada de Fourier no infravermelho de reflectância difusa (DRIRFT) e espectroscopia de reflectância total atenuada de infravermelho (IR-ATR). Em um outro local discutiremos detalhadamente essas técnicas.

Tomografia de raios-X:

Um problema relacionado ao estudo de fósseis diz respeito à extração do exemplar das rochas que os contêm. A maneira convencional de se atacar esse problema é remover a rocha do fóssil, ou mecanicamente, utilizando agulhas metálicas e brocas, ou através de substâncias química, como o ácido acético que às vezes é utilizado para remover o carbonato de cálcio de fósseis com fosfatos. Obviamente, ambas as alternativas podem danificar os espécimes, em especial aqueles que possuem estruturas bem delicadas. O problema é que estas técnicas não permitem o estudo de anatomias internas. Para resolver esta dificuldade utiliza-se a tomografia que permite a criação de modelos tridimensionais a partir da superposição de uma sequência de imagens bidimensionais.

As reconstruções digitais de fósseis - os denominados fósseis virtuais - fornecem uma interessante maneira de estudar a morfologia dos espécimes. As vantagens em relação a modelos físicos tridimensionais é que podem ser vistos (utilizando-se softwares apropriados) a partir de qualquer posição, dissecados e serem coloridos para se escolher ou destacar determinadas estruturas. Tais reconstruções digitais são conseguidas exatamente com a técnica de tomografia de raios-X.

A tomografia de raios-X é uma técnica bastante interessante para estudar fósseis tridimensionais, especialmente aqueles cujas anatomias das partes moles foram preservadas. Essa técnica pode ser utilizada com tecnologias de varredura como metodologias auxiliares, incluindo a tomografia de nêutrons, imagens de ressonância magnética e tomografia computadorizada de raios-X. Embora existam muitos fósseis tridimensionais, a preservação de partes moles se dá em sua maioria, apenas nos depósitos langerstätten, isto é, depósitos com fósseis de excepcional preservação (Por exemplo, a chapada do Araripe é considerada um langerstätten para fósseis do Período Cretáceo). O problema com os fósseis que ainda contêm partes moles é o fato de que o acesso a essas partes deve superar a estrutura sólida que o contém. Isso pode ser feito por alguns métodos como a dissolução da matriz. Entretanto, mesmo assim, o interior da parte mole do fóssil continua inacessível e para se conseguir enxergar o seu interior é necessário utilizar a tomografia.


Figura 8: Reconstrução e restauração digital de um fóssil a partir de imagem obtida por tomografia de raios-X [2].


Referências:

[1] F.E. Sousa Filho, J. Hermínio da Silva, A.A.F. Saraiva, D.D.S. Brito, B.C. Viana, B.T.O. Abagaro, P.T.C. Freire, Combination of Raman, Infrared, and X-Ray Energy-Dispersion Spectroscopies and X-Ray Diffraction to Study a Fossilization Process, Brazilian Journal of Physics 41, 275 – 280 (2011).
     
[2] J.A. Cunningham, I.A. Rahman, S. Lautenschlager, E.J. Rayfield, and P.C.J. Donoghue, A virtual world of paleontology, Trends in Ecology & Evolution 29 (2014) 347-357.

[3] J.H. Silva, F.E. Sousa Filho, A.A.F. Saraiva, N.A. Andrade, B.C. Viana, J.M. Sayão, B.T.O. Abagaro, P.T.C. Freire, G.D. Saraiva, Spectroscopic Analysis of a Theropod Dinosaur (Reptilia, Archosauria) from the Ipubi Formation, Araripe Basin, Northeastern Brazil, Journal of Spectroscopy 2013, Article ID 437439 (2013).         

[4] J.H. da Silva, P.T.C. Freire, B.T.O. Abagaro, J.A.F. Silva, G.D. Saraiva, F.J. de Lima, O.A. Barros, R.A. Bantim, A.A.F. Saravia, B.C. Viana, Spectroscopic studies of wood fossils from the Crato Formation, Cretaceous Period, Spectrochimica Acta A 115, 324 – 329 (2013).

[5] M.C. Sutton, Tomographic techniques for the study of exceptionally preserved fossils, Proc. R. Soc. B 275 (2008) 1587–1593. doi:10.1098/rspb.2008.0263

[6] P.T.C. Freire, B.T.O. Abagaro, F.E. Sousa Filho, J.H. da Silva, A.A.F. Saraiva, D.D.S. Brito, B.C. Viana, Pyritization of Fossils from the Langerstätte Araripe Basin, Northeast Brazil, from the Cretaceous Period., In Pyrite: Synthesis, Characterization and Uses. Editors: N. Whitley and P.T. Vinsen, Nova Science Publishers, Inc. , pp. 123-140 (2013) ISBN: 978-1-62257-851-1.

[7] P.T.C. Freire, J.H. Silva, F.E. Sousa-Filho, B.T.O. Abagaro, B.C. Viana, G.D. Saraiva, T.A. Batista, O.A. Barros, A.A.F. Saraiva, Vibrational spectroscopy and X-ray diffraction applied to the study of Cretaceous fish fossils from Araripe Basin, Northeast of Brazil, Journal of Raman Spectroscopy 45 (2014) 1225 – 1229.

[8] R.J.C. Lima, A.A.F. Saraiva, S. Lanfredi, M.A.L. Nobre, P.T.C. Freire, J.M. Sasaki, Caracterização espectroscópica de peixe do período Cretáceo (Bacia do Araripe), Química Nova 30 (2007) 22 – 24.

[9] R.J.C. Lima, P.T.C. Freire, J.M. Sasaki, A.A.F. Saraiva, S. Lanfredi, M.A.L. Nobre, Estudo de coprólito da bacia sedimentar do Araripe por meios de espectroscopia FT-IR e difração de raios-X, Química Nova 30 (2007) 1956 – 1958.

[10] W.J. Alencar, F.E.P. Santos, J.C. Cisneros, J.H. da Silva, P.T.C. Freire, B.C. Viana, Spectroscopic analysis and X-ray diffraction of trunk fossils from the Paraníba Basin, Northeast Brazil, Spectrochimica Acta A 135, 1052 – 1058 (2015).

[11] F.E. Sousa Filho, J.H. da Silva, G.D. Saraiva, B.T.O. Abagaro, O.A. Barros, A.A.F. Saraiva, B.C. Viana, P.T.C. Freire, Spectroscopic studies of the fish fossils (Cladocyclus gardneri and Vinctifer comptoni) from the Ipubi Formation of the Cretaceous Period, Spectrochimica Acta A 157, 124 –128 (2016).


quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Ondas gravitacionais

Hoje é um dia histórico para a ciência. Foi anunciada a detecção, pela primeira vez, de ondas gravitacionais, oriundas da colisão de dois buracos negros localizados a 1,3 bilhões de anos-luz.

Para entendermos melhor como surgem as ondas gravitacionais é interessante nos reportarmos às ondas eletromagnéticas (visível, infravermelho, ondas de rádio, raios-X, etc). Uma entidade básica na teoria eletromagnética é a carga elétrica, cuja unidade fundamental está presente no elétron (tendo um valor negativo) ou está presente no próton (tendo um valor positivo). As equações básicas que descrevem os campos elétricos e magnéticos que em última análise têm influência sobre as cargas, estejam elas paradas ou em movimento, são as equações de Maxwell. As equações de Maxwell são equações diferenciais cujas soluções estão além do escopo deste texto. O importante é que da manipulação de algumas destas equações - que são em número de quatro - pode-se chegar a uma equação de onda, a equação da onda eletromagnética. A ideia física que está por trás da equação da onda eletromagnética é o fato de que carga acelerada produz uma onda eletromagnética. Assim, cargas aceleradas podem produzir ondas eletromagnéticas, como os elétrons de uma antena transmissora de uma estação de rádio ou de tv, que estão acelerados e, por consequência, produzem uma onda eletromagnética que se movimentará com a velocidade da luz até encontrar uma antena receptora.

Similarmente ao que ocorre com as cargas aceleradas que produzem uma radiação eletromagnética que se propaga no espaço como uma onda eletromagnética, massas aceleradas produzem ondas gravitacionais. Esta é uma previsão da teoria da Relatividade Geral de Einstein. Antes do trabalho divulgado hoje, já existiam evidências de que as ondas gravitacionais talvez fossem um fato real. O trabalho hoje divulgado se refere a um evento batizado de GW150914, verificado em uma galáxia localizada a mais de um bilhão de anos-luz da Terra. Isso significa que a luz - ou qualquer sinal oriundo dessa galáxia - levou mais de um bilhão de anos para atingir a Terra. De certa forma, ao avistarmos algum fato originado na referida galáxia, estamos olhando o que aconteceu há bastante tempo.

Pois bem, no que se refere ao fenômeno cataclísmico GW150914, ele consistiu na colisão e fusão de dois buracos negros, que possuíam massas 32 e 29 vezes a massa do Sol. Esta fusão resultou na formação de um novo buraco negro com massa de cerca de 62 vezes a massa do Sol e a liberação de energia - no pico de luminosidade - de cerca de 10 elevado a potência 56 ergs/s [1]. A liberação de uma onda gravitacional devido ao fenômeno permitiu que a mesma fosse detectada por dois detectores do Observatório de Ondas Gravitacionais por Interferometria Laser (LIGO, em inglês) no dia 14 de setembro de 2015.

O LIGO é o maior laboratório destinado à observação de ondas gravitacionais do mundo. Ele é composto por dois grandes interferômetro a laser localizados a cerca de 3000 km de distância um do outro: um localizado em Livingston, e o segundo em Hanford, Washington [2]. O interferômetro que forma o LIGO consiste de dois braços de 4 km cada um dispostos perpendicularmente um em relação ao outro. No experimento, um feixe de laser é enviado para as extremidades dos braços e refletidos de volta. A ideia é que a onda gravitacional ao passar pelo interferômetro produz um efeito de alongamento e de encolhimento dos braços, o que fará com que a luz dos lasers percorram distâncias diferentes, tirando-os de fase e produzindo um padrão de interferência. De acordo com os pesquisadores que operam o sistema LIGO, a deformação esperada é menor do que o diâmetro de um próton. De fato, é uma deformação extremamente pequena, mas pelo fato do trabalho ter sido reportado numa das principais revistas de física do mundo, pelo menos aponta para que parte da comunidade científica que trabalha com física, acredite na validade dos resultados. Obviamente, mais pesquisas e novas medidas deverão ocorrer nos próximos anos.

[1] The LIGO Scientific and Virgo Collaborations, Physical Review Letters 116, 061102 (2016).
[2] Riccardo Sturani, Observação de ondas gravitacionais geradas pela fusão de um sistema binário de buracos negros; nota técnica, 17/11/2016.