sexta-feira, 22 de abril de 2022

Titan e sua atmosfera

Com exceção da Terra, Titan é o único corpo no sistema solar que possui uma atmosfera de nitrogênio metálico (N2) e apresenta líquidos sobre a sua superfície. A primeira sugestão de que Titan possuísse uma atmosfera foi feita por José Comas Solá, que num artigo intitulado “Observations des satellites principaux de Jupiter et de Titan”, de 1908, sugeriu que o escurecimento do limbo do satélite poderia ser um indicativo dessa existência. Posteriormente, em 1944, Gerard Kuiper descobriu a existência de metano (CH4) em torno do satélite de Saturno, indicando agora conclusivamente que o mesmo possuía atmosfera.

A química da atmosfera de Titan produz materiais que são depositados em sua superfície e posteriormente alterados pelas interações atmosfera-superfície através de processos eólicos e fluviais, dando origem a campos de dunas, lagos e mares. A existência de moléculas orgânicas e a sua interação com a água em um oceano subterrâneo e metano e etano nos lagos e mares, implica que Titan é um potencial laboratório para se verificar a química prebiótica [1, 2].

Observações realizadas da Terra por infravermelho indicaram que a existência de CH4 seria apenas marginal. As naves Voyager 1 e 2 quando se aproximaram de Titan no começo da década de 1980 mostraram que a sua atmosfera possuía uma pressão superficial de cerca de 1,5 vezes a da Terra e uma temperatura em sua superfície de 94 K. Além disso, os espectros de infravermelho revelaram a presença de várias moléculas orgânicas como metano (CH4), hidrogênio molecular (H2), etano (C2H6), acetileno (C2H2), etileno (C2H4), cianido de hidrogênio (HCN), metilacetileno (C3H4), propano (C3H8), diacetileno (C4H2), cianoacetileno (HC3N), cianogeno (C2N2), e dióxido de carbono (CO2), entre outros [2, 3]. 

A superfície do satélite saturniano não foi enxergada pelas Voyagers mas esse problema foi superado com a chegada da sonda orbital Cassini e a sonda Huygens em 2004. As descobertas realizadas pelo sistema Cassini-Huygens incluem a forte conexão entre a atmosfera e a superfície de Titan. O material orgânico existente sobre a superfície do satélite foi formado por processos químicos e físicos ocorridos em sua atmosfera.

Os estudos realizados (i) a partir de observações da Terra, (ii) do sensoriamento remoto de sondas orbitais, (iii) de sondas na superfície, (iv) de experimentos em laboratório e (v) de modelos teóricos, permitiram que se conseguisse uma boa compreensão da atmosfera de Titan. Sabe-se que os principais constituintes são o N2 e o metano (CH4), que é o alcano mais simples. Por receber apenas 1% da energia solar que chega à Terra, Titan tem uma temperatura de 94 K em sua superfície, como comentado acima. Aliado ao fato de que a pressão é de aproximadamente 1,5 bar, isso significa que na superfície as condições são tais que o ambiente está pouco acima do ponto triplo do metano, permitindo a existência de gás na atmosfera e líquido na superfície. Em outras palavras, existe um ciclo "metanológico" em Titan, similar ao ciclo hidrológico na Terra [2].

Devido à menor gravidade de Titan, comparada à do nosso planeta, a atmosfera do satélite se estende por uma maior altura [2]. Para facilitar o entendimento, a atmosfera de Titan é separada em quatro principais extratos, assim como a da Terra: troposfera, estratosfera, mesosfera e termosfera. Não foi observada nenhuma correlação entre temperatura e latitude,indicando que a influência da energia solar é pequena para definir esse parâmetro no satélite de Saturno. Por outro lado, quando Titan encontra-se dentro da magnetosfera de Saturno, suas temperaturas são maiores, e menores quando encontra-se fora.

A radiação ultravioleta do Sol é responsável pela dissociação e ionização do N2 e do CH4, dando origem a reações químicas que resultam na destruição irreversível do CH4, levando à formação do H2 e outras moléculas orgânicas como os hidrocarbonetos e nitrilos:

                 CH4 + h𝜈 → CH3 + H;  CH4 + h𝜈 → CH2 + H2;  CH4 + h𝜈 → CH + H2 + H.

A agregação dessas moléculas e a produção de aerosóis fornece a cor laranja característica da atmosfera de Titan. Na verdade, existem várias fontes de ionização e dissociação nessa atmosfera; além da radiação ultravioleta e ultravioleta extremo (EUV), também estão disponíveis elétrons da magnetosfera de Saturno, fotoelétrons (oriundos de elétrons de fótons EUV e de raios-X solares), íons energéticos (prótons, oxigênio), íons metálicos e raios cósmicos galácticos [2]. A radiação solar é a energia dominante para levar a cabo as reações químicas na atmosfera de Titan, p.ex., sendo responsável por cerca de 90% da destruição do N2. A molécula de C2H2 é particularmente importante porque absorve acima de 5,17 ev (240 nm), que é uma região com um bom fluxo de energia. O C2H2 e C4H2 absorvem fótons com energias mais baixas do que CH4 e dissociam formando C2H ou C4H, que então reagem com o metano para produzir radicais metil (CH3) e C2H2 e C4H2, que funcionam como substâncias catlíticas para a destruição do metano, utilizando fótons que o metano não absorve:

                                              C2H2 + h𝜈 → C2H + H

                                        C2H + CH4 → CH3 + C2H2.

Muitos modelos fotoquímicos têm sido utilizados para tentar reproduzir a abundância das menores moléculas (tipicamente < 100 Da) na atmosfera de Titan. A Fig. 1 apresenta um resumo com as 10 moléculas mais abundantes geradas fotoquimicamente na estratosfra de Titan.

Figure 1: As 10 moléculas mais abundantes geradas eletroquimicamente na estratosfera de Titan na ordem decrescente de abundância, as reações dominantes e os mecanismos de percas [2].

Imagens e medidas de polarização obtidas pelas sondas Pioneer 11 e Voyager 1 e 2, juntamente com modelos teóricos sugeriram que os aerosóis da atmosfera de Titan seriam compostos por matéria orgânica com agregados fractais [4]. É interessante que foi observada uma assimetria norte-sul nas hazes (haze significando partículas não voláteis geradas fotoquimicamente). Atualmente, sabe-se que as partículas haze estão presentes desde a superfície de Titan até a ionosfera. Os hazes são as fontes dominantes para a opacidade de radiação com comprimentos de onda menores do que 5 micras, acreditando-se que ele contribua para esfriar a superfície e aquecer a estratosfera [2]. Resultados obtidos por ocultação de estrelas observadas por luz ultravioleta através do Cassini Ultra-violet Imaging Spectrograph (UVIS) mostraram a existência de partículas em até incríveis 1000 km de altura e aerosóis em até 850 km [5]. Por sua vez, medidas realizadas através do Cassini Visible and Infrared Mapping Spectrometer (VIMS) indicaram a presença de CH4, C2H6, CH3CN, C5H12, C6H12 e C6H14 como seus possíveis constituintes entre 60 e 500 km.

As observações apontam para a existência de íons pesados e partículas na termosfera/ionosfera de Titan, ou seja, numa região da atmosfera localizda tipicamente entre 1000 e 1400 km de altura. Acredita-se que moléculas de HCN, C2H2 e C2H4, entre outras, são produzidas principalmente na ionosfera, em vez de serem produzidas na estratosfera (~ 200 km). Acredita-se também que na ionosfera são formadas partículas nanoscópicas a partir de uma dimensão de 0,35 nm de raio. À medida que a densidade da atmosfera aumenta, principalmente entre 500 e 650 km, os aerosóis crescem por agregação. Já entre 500 e 400 km, os aerosóis reagem diretamente com a fase gasosa de alguns radicais como o HCCN, que desempenha um papel importante em várias reações químicas [2].

Referências:

[1] V.A. Krasnopolsky, Icarus 201, 226 - 256 (2009).

[2] S.M. Hörst, J. Geophys. Res.: Planets 122, 432 - 482 (2017).

[3] R. Hanel et al., Science 212, 192 (1981).

[4] R.A. Wste, P.H. Smith, Icarus 90, 330 - 333 (1991).

[5] T.T. Kosninem et al., Icarus 216, 507 - 534 (2011).