sexta-feira, 14 de maio de 2021

Compostos de urânio

Há muito tempo li dois interessantes livros de divulgação científica sugeridos pelo saudoso Prof. Rubens de Azevedo e escritos por Rômulo Argentiere: 'Átomos para a Guerra' e 'Átomos para a Paz'. Encontrei-os em um sebo em Fortaleza lá pelos idos de 1979/1980, o que não foi tarefa difícil, haja vista que Argentiere foi um dos grandes divulgadores brasileiros de ciências do século passado [1]. Tratavam-se de explicações de como a energia nuclear poderia ser usada pela humanidade, trazendo benefício ou então, levando-a à destruição através de armas poderosíssimas. Mesmo sendo um livro de divulgação apresentava alguns aspectos técnicos que eu não compreendia. Entretanto, se destacava para mim, e acredito que para todos os leitores, o fato de que o urânio era um personagem central naquela história sobre a aplicação da radioatividade.

O urânio é o elemento químico natural com maior número atômico, 92, o que significa que no seu núcleo existem 92 prótons. Para manter a estabilidade desse núcleo é necessário um grande número de nêutrons. A maior parte do urânio existente é urânio-238 (99.27%), que contém 146 nêutrons, enquanto que em pequena quantidade existem o urânio-235 (0.72%), que contém 143 nêutrons e o urânio-234 (0,01%), que conta com 142 nêutrons. É possível também sintetizar vários outros isótopos de urânio com o núcleo contendo entre 125 e 150 nêutrons. A partir do urânio pode-se produzir o elemento químico plutônio através de uma reação onde o netúnio é um elemento químico intermediário. A equação abaixo ilustra essa reação [2]:
,
onde D representa o deutério, n representa um nêutron, e- representa um elétron e ne (com uma barra) representa um antineutrino do elétron.  

O urânio pode aparecer em diferentes estados de oxidação (III, IV, V, VI), o que permite que ele forme um grande número de compostos químicos. Na natureza, o urânio pode ser obtido a partir de diversos minerais. Um mineral que contém grande quantidade desse elemento químico é a plechebenda (UO2, UO3 + ThO2, CeO2) que é uma mistura de óxidos, e que após beneficiado se transforma no óxido de urânio (U3O8), um concentrado conhecido como yellowcake. É interessante lembrar que a partir da plechebenda, Pierre Curie e Marie Curie - num trabalho hercúleo de purificação - descobriram dois novos elementos químicos bastante radioativos, o polônio e o rádio. Outros minerais que também contêm urânio são a carnotita (K2(UO2)2(VO4)2·2H2O), a autunita (Ca(UO2)2 (PO4)2·nH2O), o uranofan (CaO·UO2·2SiO2·6H2O) e a cofinita, U(SiO4)(OH)4, entre outros.

Um aspecto interessante do urânio-238 é que a sua meia-vida é de 4,5 bilhões de anos. Isso significa que ele pode ser utilizado para fazer a datação de rochas muito antigas existentes no nosso planeta. Em outras palavras, dependendo da quantidade de urânio-238 presente numa rocha, pode-se determinar a sua idade.

O urânio (IV) é o estado de oxidação dominante de urânio na crosta terrestre. Ele é encontrado em grande quantidade na uraninita UO2+d, e na cofinita, USiO4, além também de minerais bastante raros, como a behounekita, U(SO4) (H2O)[3]. Entretanto, o urânio (VI) é o mais estável; quando exposto à água, o urânio (VI) rapidamente forma o íon uranil UO22+. É importante destacar que em certas circunstâncias é desejável reduzir o U(VI) mais móvel do ponto de vista ambiental, para o menos móvel U(IV) de tal forma que se consiga a sua imobilização e deixe o ambiente mais protegido em relação à radiotoxidade [3].


É conhecido da literatura que há várias formas de se reduzir o U(VI) para o U(IV). Uma maneira bastante estudada é a redução fotoquímica do uranil. Na presença de álcoois, formatos e oxalatos, o urânio pode ser reduzido fotoquimicamente ao UO2e ao U(IV). No caso particular dos sulfatos uranil, as unidades estruturais consistem em cadeias de poliedros uranil e tetraedros sulfatos. Os sulfatos uranil (IV) podem aparecer como estruturas em cadeia, estruturas em camada ou como estruturas do tipo framework [3]. A Figura 1 apresenta uma vista da estrutura cristalina do U3H2(SO4)7 (H2O)5.3H2O, de acordo com a Ref. [3] e a Tabela 1 apresenta os parâmetros cristalográficos de diversos sulfatos de urânio.


Figura 1: Representação do cristal de U3H2(SO4)7 (H2O)5.3H2O [3].

Tabela 1: Parâmetros cristalográficos de alguns cristais de sulfato de urânio [3].

O urânio também pode formar algumas soluções sólidas, por exemplo, com o tório. Sabe-se que o USiO4 cristaliza-se numa estrutura tetragonal, sendo isoestrutural à zircônia (ZrSiO4), ao hafnon (HfSiO4) e à torita (ThSiO4). Sob condições hidrotérmicas, o USiO4 forma uma solução sólida com o ZrSiO[4]. 

Uma maneira complementar de se estudar materiais de uma forma geral, e compostos de urânio em particular, é através de simulações computacionais que, eventualmente, podem revelar interessantes características. Uma das possíveis maneiras é através de cálculos de primeiros princípios, como o Density Funcional Theory (DFT). Nesses cálculos eventualmente surgem problemas quando se está abordando materiais com elétrons f. Isso pode introduzir erros graves e, por exemplo, predizer que muitos semicondutores apresentem estados metálicos. Como consequência, correções adicionais além do cálculo tradicional usualmente utilizados para a maioria dos outros elementos químicos tornam-se necessárias. Num estudo recente foram realizados cálculos em quatro substâncias que são importantes no campo de combustíveis nucleares, UC, UN, UO2, and UCl3, fornecendo informações sobre a dependência de estados metaestáveis nas propriedades físicas desses materiais [5]. A conjunção entre investigações experimentais e simulações computacionais é uma tendência forte no estudo dessa família de compostos, aliás, assim como na maioria das áreas das ciências de materiais.

Referências:
[1] P.V. Mauso, Por que Rômulo Argentiere foi tão importante para a ciência brasileira?, Super Interessante, 30/11/2002, atualizado 05/11/2016, https://super.abril.com.br/historia/romulo-argentiere/ (consultado em 14/05/2021).
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Ur%C3%A2nio (consultado em 14/05/2021).
[3] L. Zhang et al., Inorg. Chem. 59, 5813 (2020).
[4] S. Labs et al., Environ. Sci. Technol. 48, 854 (2014).
[5] M.S. Christian et al., J. Phys. Chem. A 125, 2791 (2021).


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