sexta-feira, 11 de outubro de 2013

A função de onda

Na mecânica clássica a descrição do movimento é feita através da segunda lei de Newton, onde a força desempenha um papel fundamental na teoria. A força descreve a interação entre o sistema em análise e o ambiente no qual ele se encontra. A partir do conhecimento de todas as forças que atuam sobre um objeto é possível, através das leis de Newton, descrever o movimento deste objeto.

Na mecânica quântica, que é a teoria que descreve os sistemas que possuem dimensões atômicas, a força é um conceito secundário. Assim, em vez de se usar as leis de Newton da mecânica, utiliza-se a chamada equação de Schrödinger, na qual o conceito de energia desempenha um papel fundamental. Por exemplo, para o átomo de hidrogênio, a equação de Schrödinger prediz os possíveis valores de energia E que o elétron pode ter através da equação:
 \widehat {H}\psi = E\psi       (1)

onde H é uma entidade matemática conhecida como operador hamiltoniano (que representa a energia total do átomo) e a letra grega psi é a função de onda do sistema. A equação (1), na verdade, é a equação de Schrödinger independente do tempo. Na sua forma mais geral, quando psi depende tanto das coordenadas quanto do tempo, a equação de Schrödinger possui a forma:

Tecnicamente, a equação de Schrödinger é uma equação diferencial. Assim, podemos dizer que esta equação é uma prescrição para determinar a função de onda de uma partícula ou de um objeto. A função de onda, por sua vez, representa tudo o que pode ser conhecido acerca do estado físico de um objeto.


Apesar de representar todo o conhecimento relativo ao estado físico em estudo, a função de onda é uma quantidade difícil de interpretar e, além do mais, não pode ser observada diretamente, uma vez que é uma grandeza complexa.

Vamos considerar uma situação física na qual existem duas fendas estreitas (da ordem do comprimento de onda da luz, digamos 550 nm). Se considerarmos a luz como sendo um fenômeno ondulatório, ao passar por duas fendas ela vai apresentar, entre outros o efeito de interferência, que está representado na Figura 1. 


 
Figura 1: Representação do fenômeno de interferência produzido quando a luz passa por duas fendas.


A principal característica da interferência é que no anteparo na parede atrás das duas fendas, observar-se-á um padrão no qual algumas regiões estarão claras (onde a luz atinge a parede) e outras regiões estarão escuras (a luz não atinge a parede naquele ponto). No primeiro caso temos interferência construtiva e no segundo caso temos interferência destrutiva. Este fenômeno é conhecido e é bem entendido há mais de trezentos anos.

Consideremos agora a situação na qual, a partir da fenda inicial marcada por uma seta na Figura 1, em vez de estar emergindo uma onda, estejam sendo emitidos elétrons. Este experimento possui uma excelente discussão em diversos livros textos de mecânica quântica, como as Refs. [1, 2].
  
Sendo ejetados elétrons a partir da fenda marcada pela seta, se as fendas A e B estiverem abertas, observar-se-á que sobre o anteparo atrás das fendas aparecerá um padrão de interferência típico de uma onda, ou seja, neste experimento os elétrons se comportarão como onda. Um detalhe importante da experiência é que o aspecto ondulatório não aparecerá por causa da interferência de um determinado elétron com outro elétron lançado simultaneamente. Mesmo que seja lançado um único elétron por vez e os vários lançamentos sejam feitos com diferença de vários segundos ou minutos um dos outros, o padrão de interferência será verificado. Isso significa que uma única partícula se comporta como uma onda.

Vamos agora associar a função de onda psi a uma amplitude de probabilidade F(a, b), onde a representa o local de onde a partícula saiu e b o local em que ela chegou. Assim, da Figura 1 podemos dizer que F(s, A) é a amplitude de probabilidade de um elétron sair da fenda marcada pela seta e chegar à fenda A. Similarmente podemos dizer que F(A, e) é a amplitude de probabilidade do elétron partir de A e chegar no ponto marcado pela estrela. Supondo que durante este experimento a fenda 2 permaneça fechada, a amplitude de probabilidade do elétron sair da fenda marcada pela seta e chegar ao ponto estrela passando pela fenda 1 será:

F(s, e) = F (s, A) . F(A, e)                                   (2)


Para continuar a discussão será necessário estabelecer um dos principais postulados da teoria quântica: a probabilidade, P, de ocorrência de uma determinada situação física caracterizada por uma função de onda psi (ou equivalentemente por uma amplitude de probabilidade F(a, b)) é dada pelo módulo quadrado da função de onda (ou da amplitude de probabilidade). Assim, P = | F(a, b) |. Este breve postulado afirma, em suma, que a amplitude de probabilidade não é uma probabilidade, mas uma raiz quadrada complexa de uma probabilidade.

Levando em conta este postulado podemos afirmar que a probabilidade da partícula sair da fenda marcada pela seta e chegar ao ponto marcado por uma estrela passando pela fenda 1, mantendo-se a fenda 2 fechada, será:

P = | F(s, A) |.| F(A, e) |= | F(s, A) . F(A, e) |       (3)

Esta última equação é consequência do fato de que  | z . w |= | z  |. | w |, onde z e w são números complexos, i.e., números que podem ser escritos na forma z = a + i b, com a e b sendo números reais e i sendo definido como a raiz quadrada de -1.

Consideremos agora uma segunda situação na qual um elétron sai da fenda marcada pela seta e chega ao anteparo no ponto estrela, mas com a possibilidade de passar pelas duas fendas da Figura 1, ou seja, as fendas A e B encontram-se abertas. Seja F1 a amplitude de probabilidade do elétron passar pela fenda 1,

F1 = F (s, A) . F(A, e)                                   (4)

e F2 a amplitude de probabilidade do elétron passar pela fenda 2, 


F2 = F (s, B) . F(B, e)                                   (5)

Assim, a amplitude de probabilidade do elétron sair da fenda marcada pela seta e chegar ao ponto estrela no anteparo será:

F1 + F2 = F (s, A) . F(A, e) + F (s, B) . F(B, e),

de tal modo que a probabilidade do elétron sair da fenda marcada pela seta e chegar ao ponto estrela com as duas fendas abertas será:

| F1 + F2 |= | F1 |+ | F2 |+ 2 | F1 | . | F2 |cos f,

onde o cos f representa uma fase oriunda do fato de estarmos elevando ao quadrado a soma de duas grandezas complexas. Esta fase é que fornece a interferência quântica entre duas situações quânticas possíveis. Para sistemas muito grandes, o cos f fica na média e cos f torna-se igual a zero; assim | F1 + F2 |= | F1 |+ | F2 |e temos a situação clássica, sem interferências quânticas.

Uma questão levantada por alguns estudiosos da teoria quântica e por alguns epistemólogos é como se falar de uma realidade física com a existência de diferentes possibilidades alternativas pesadas por números complexos. Então, (a) seria a teoria quântica um procedimento de cálculo para computar probabilidades e não uma descrição objetiva do mundo físico? (b) Sendo a teoria quântica uma teoria completa, estaria ela afirmando que não é possível obter-se uma descrição objetiva do mundo? (c) O estado quântico caracterizado pela função de onda psi de uma partícula forneceria a realidade física da mesma? 

Este, na verdade, é um aspecto da teoria que causou perplexidade até nos cientistas que estiveram mais diretamente envolvidos na construção da teoria.  Por exemplo, Paul Dirac, num seminário em 1970 afirmou: "Se hoje alguém me perguntasse qual seria o aspecto mais importante da mecânica quântica, eu me sentiria inclinado a dizer que não é a álgebra não comutativa. É a existência das amplitudes de probabilidade que permeiam todos os processos atômicos. O quadrado do seu módulo é algo que podemos observar. Esta é a probabilidade que os físicos experimentais conseguem obter. Mas além disso, existe uma fase, um número de módulo unitário que pode modificar sem afetar o quadrado do módulo. E esta fase é extremamente importante porque ela é a fonte de todos os fenômenos de interferência mas cujo significado físico é obscuro" [3].


Referências e sugestões de leitura:
[1] R.P. Feynman, R.B. Leighton, M. Sands, Lições de Física, The Feynman Lectures on Physics, V. III, Bookman (2008).
[2] J.J. Sakurai, Introductory Quantum Mechanics, Addison-Wesley, (1992).
[3] P.A.M. Dirac, Fields & Quanta 3, 139 (1972).

 

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