segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Hidrogênio metálico


O hidrogênio é o elemento químico mais abundante do universo, sendo encontrado principalmente no interior de estrelas. No Sol, por exemplo, o hidrogênio responde por mais de 80 % de sua massa. No interior de grandes planetas, como Júpiter, reinam altas temperaturas e altas pressões, condições termodinâmicas que sugerem que o hidrogênio possa se encontrar em fases bastante diferentes daquelas nas quais ele é conhecido no nosso planeta.

Um problema que vinha sendo atacado por várias décadas diz respeito à observação de hidrogênio metálico. Wigner e Huntington fizeram a previsão de que sob altas pressões o hidrogênio seria metálico. Uma maneira de se conseguir essa propriedade seria a altas pressões e altas temperaturas. Nesse caso, o hidrogênio sofre uma transição de fase para uma fase conhecida como hidrogênio metálico atômico líquido, recentemente reportado na literatura [1]. A outra possibilidade, que também foi recentemente descoberta experimentalmente, é a chamada fase de hidrogênio metálico sólido [2].

Figura 1: Diagrama de fase do hidrogênio mostrando duas formas de se conseguir o hidrogênio metálico; (i) hidrogênio metálico atômico líquido (pathway II) e (ii) hidrogênio metálico sólido (pathway I) {Ref. [2]}.

No que diz respeito à fase do hidrogênio metálico sólido – que pode ser atingido pelo caminho I da Figura 1 – uma fase inicial de alta pressão é representada pela fase I. Aumentando-se a pressão, o hidrogênio passa para uma fase II, que apresenta uma estrutura hexagonal altamente compacta (hexagonal close packed, hcp). A fase III é uma fase que se distingue da fase II por apresentar diferentes orientações das moléculas de H2. Continuando a compressão o hidrogênio passa para uma fase na qual ele aparece opaco [nesse caso ele seria um semicondutor e a opacidade seria exatamente devida ao fato de que o gap de energia coincidir com a energia da luz visível] e, finalmente, em 495 GPa ele vira um metal.

Para se atingir as altas pressões necessárias para se observar o hidrogênio metálico atômico na Ref. [2], utilizou-se uma célula de pressão a extremos de diamantes. Uma série de dificuldades, entretanto, teve que ser vencida. Em primeiro lugar, as tensões sobre os diamantes são muito grandes e o hidrogênio sob altas pressões e temperatura ambiente fragiliza as gemas e produz rachaduras. Para evitar esse problema os diamantes devem ser mantidos ou à temperatura do nitrogênio líquido ou à temperatura do hélio líquido. Além disso, antes do uso, os diamantes foram aquecidos para remover tensões residuais. Adicionalmente, com o intuito de evitar a difusão do hidrogênio pelo diamante, foi colocado um fino filme de alumina com 50 nm de espessura sobre os diamantes, utilizando-se para isso a técnica de deposição de camadas atômicas (atomic layer deposition). Outro problema que pode ocorrer com os diamantes submetidos a altas pressões é a ocorrência de falhas devido ao calor do laser utilizado na técnica de espectroscopia Raman ou à grafitização da superfície das gemas, se a intensidade da radiação for relativamente alta. Assim, para evitar estes últimos problemas no experimento apresentado na Ref. [2] foi utilizada radiação infravermelha de baixa potência. A determinação da pressão no interior da gaxeta de rênio onde encontrava-se o hidrogênio sobre investigação pode ser considerado um desafio à parte. Ao longo do intervalo entre 88 e 500 GPa foram utilizadas três diferentes técnicas, sendo que de uma forma direta, através da luminescência do rubi, só é possível realizar-se medidas até 150 GPa.

A Figura 2 apresenta três momentos das medidas de altas pressões, conforme reportado por Dias e Silvera na Ref. [2]. Em 205 GPa, o hidrogênio molecular apresenta-se como uma substância transparente. Em 415 GPa, o hidrogênio molecular, numa outra fase, aparece como uma substância opaca. Finalmente, em P = 495 GPa, o hidrogênio apresenta-se na fase metálica sólida, refletindo a luz que é lançada pela parte superior da célula de pressão; essa é a primeira evidência em laboratório de que o hidrogênio sob altas pressões é um sólido metálico. Assim, 81 anos após a previsão teórica de Wigner e Huntington ter sido feita [3], finalmente o hidrogênio metálico foi encontrado. 

Figura 2: Fotografias do hidrogênio dentro de uma célula de pressão a extremos de diamante em diferentes estágios de compressão como registrado por R. Dias e I.F. Silveira. (a) Até pressões de 335 GPa o hidrogênio apresenta-se transparente; (b) em P = 415 GPa, a amostra apresenta-se escura; (c) em P = 495 GPa, a amostra não deixa luz ser transmitida por ela, mas apresenta-se brilhante por luz refletida [2].


Controvérsia:
 
Do ponto de vista experimental, o experimento realizado por Dias e Silvera é de grande complexidade. Isso se deve à grande difusividade do hidrogênio na gaxeta metálica e nos defeitos do diamante, à sua alta reatividade química com os materiais ao seu redor e à sua forte compressibilidade [4]. Por conta disso, hoje, em março de 2017, muitos cientistas não acreditam que o hidrogênio metálico tenha sido realmente conseguido. Por exemplo, Paul Loubeyre, do Atomic energy Research Centre for Military Applications, na França, não acredita que eles tenham atingido a pressão de 495 GPa [4]. Segundo ele, as células de pressão, tal como os diamantes são desenhados, não conseguem ultrapassar 350 GPa: "Para se atingir pressão acima de 400 GPa um novo tipo de formato do diamante é necessário. além disso, a análise da refletividade está incorreta" [5]. Mikhail Eremets, do Max Planck Institute for Chemistry in Mainz, na Alemanha, também acredita que há erros nos cálculos acerca da refletividade, característica que se constitui no principal indício da metalização do hidrogênio. 

Além disso, Eremets e Drozdov (ED) acreditam que a pressão foi superestimada [6, 7]. Eles questionam o método de medida de pressão dos autores Dias-Silvera (DS). De fato, DS utilizaram os giros do parafuso da célula de pressão como o método indireto para medida deste parâmetro termodinâmico para P > 300 GPa. Mas como muito bem notado por ED, a pressão que está sendo aplicada numa amostra depende da geometria particular dos diamantes, da gaxeta, etc. A cada experimento, determinados valores de rotação do parafuso corresponderão a distintos valores de pressão. Para ilustrar esse ponto, ED recuperam os dados publicados há dez anos por Akahama [8], que mostram que com diferentes dimensões do culet do diamante, obtêm-se diferentes pressões com um mesmo avanço do pistão (Figura 3).
 Figura 3: Dependência da pressão (GPa) com o avanço do pistão (micra) para diferentes diâmetros do culet do diamante [6, 8]. Observe-se que com um avanço do pistão de 100 micra, por exemplo, dependendo se o culet tiver 25 ou 50 micra, a pressão diferirá de até 100 GPa.



ED [6] lembram ainda que a escala de pressão do diamante (isto é, da frequência de vibração dos grupos C - C) é estabelecida pela equação de estado dos metais até 400 GPa. Uma dependência linear do desvio Raman é válido apenas até cerca de 300 GPa e para pressões maiores uma escala não linear deverá ser utilizada. ED lembram que tal fato foi confirmado medindo-se a equação de estado do ouro até 400 GPa. Entretanto, no trabalho de DS, os autores utilizam uma escala linear, fornecendo um valor máximo de 495 GPa; se a escala utilizada tivesse sido a não-linear, eles teriam atingido a improvável pressão de 633 GPa! Além disso, ED lembram que é surpreendente DS atingirem 495 GPa com um diamante de 30 a 35 micrômetros de bigorna de chanfro simples, uma vez que o recorde é 450 GPa com bigornas do mesmo tipo, mas medindo de 15 a 20 micrômetros. Mesmo o argumento de DS que eles realizaram um etching sobre a superfície do diamante para remover os defeitos ali existentes e propiciar o alcance de uma maior pressão não justificaria a pressão supostamente atingida, haja vista que com esta metodologia não é possível ultrapassar 400 GPa de pressão.

ED também acreditam, baseado na análise cuidadosa do espectro Raman do diamante apresentada por DS, que a pressão no experimento desses últimos autores era da ordem de 380 GPa. Contudo, ED anteriormente haviam observado uma transição a uma nova fase condutora de baixa temperatura, possivelmente metálica, conforme mostraram certas evidências como a queda da resistência e o desaparecimento do sinal Raman em 360 - 380 GPa. O experimento de ED foi repetido três vezes em 2016, mas mesmo assim eles acreditam que seriam necessários mais experimentos. Além disso, ED afirmam que as reflexões, separadamente, podem ser evidência apenas do hidrogênio indo para a fase III, que não é metálica, pois o sinal Raman ainda está presente. Assim, ED acreditam que este fato seria outra evidência que DS estariam realmente em pressões abaixo de 400 GPa, tal qual os seus antigos experimentos. 

Nessa mesma direção, Loubeyre, Occelli e Dumas (LOD) [4] apontam que é surpreendente que no trabalho de DS o hidrogênio se torne negro em 400 GPa, quando o trabalho do grupo de LOD mostrou 15 anos antes que este fenômeno acontece em 320 GPa, portanto 80 GPa abaixo do que acreditam os autores da Ref. [2]. Isso seria outro indicativo da superestimação do valor da pressão no experimento de Dias - Silvera. De fato, é mais ou menos consenso entre vários grupos [utilizando diversos tipos de calibração] que o hidrogênio negro ocorra para pressões da ordem de 300 GPa na temperatura de 80 K. É de se notar ainda que se for utilizado uma fórmula empírica de Ruoff, para o valor do diâmetro do culet do diamante utilizado, a pressão máxima atingida por Dias - Silvera teria sido de aproximadamente 340 GPa, e jamais 495 GPa!

No que diz respeito às medidas de reflexão, ED também levantam algumas dúvidas. Em primeiro lugar, a alumina que foi colocada sobre a superfície do diamante pode refletir igual ao alegado hidrogênio metálico. Desta forma, ED sugerem que outro tipo de protetor seja usado sobre o diamante. O ideal, segundo ED, teria sido a realização de medidas de condutividade. Contudo, devido à ausência destas medidas mais definitivas, DS mediram a refletividade acoplada ao uso da teoria de Drude dos elétrons livres. Entretanto, este método exigiria medida de refletividade em uma grande região espectral, e não em apenas quatro pontos do espectro visível. ED questionam onde é a superfície de referência, como a luz incidente atingiu a célula de pressão, se os diamantes eram perfeitamente planos e não na forma de um espelho convexo o que induziria um brilho adicional, etc [6]. Finalmente, outro detalhe relatado pela Ref. [6] é a lembrança de que os diamantes absorvem luz, mas o gap de energia da banda diminui bastante em virtude da aplicação da pressão uniaxial. Isso significa que uma correção deveria ter sido feita, mas embora DS a façam no seu trabalho, o procedimento é indevido uma vez que eles usam os dados de um aparato relativo a um outro experimento.

Referências:
[1] M. Zaghoo, A. Salamat, I.F. Silvera, A first-order phase transition to metallic hydrogen. Phys. Rev. B 93, 155128 (2016).
[2] R. Dias, I.F. Silvera, Observation of Wigner-Huntington transition to solid metallic hydrogen, arXiv:1610.01634 [cond-mat.mtrl-sci]; Science 355, 715-718 (2017).
[3] E. Wigner, H. B. Huntington, On the Possibility of a Metallic Modification of Hydrogen. J. Chem. Phys. 3, 764-770 (1935).
[4] P. Loubeyre, F. Occelli, P. Dumas, 2017, arxiv: 1702.07192.
[5] P. Ball, Controversial metallic hydrogen calim under new scrutiny, 10/03/2017 https://www.chemistryworld.com/news/controversial-metallic-hydrogen-claim-under-new-scrutiny-/2500534.article
[6] M.I. Eremets, A.P. Drozdov, 2017, arxiv: 1702.05125.
[7] A.F. Goncharov, V. Struzhkin, 2017, arxiv: 1702.04246.
[8] Y. Akahama, 2007. Diamond anvil Raman gauge in multimegabar range. Workshop on Pressure scale. Jan. 26-28 2007 Geophysical Lab, CIW.